terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A Náusea

Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo - 11/12/2012

O grande Cole Porter tem uma letra de música que diz: "Conflicting questions rise around my brain/ Should I order cyanide or order champagne?" ("Questões conflitantes rondam minha cabeça/ devo pedir cianureto ou champanha?")

Sinto-me assim, como articulista. Para que escrever? Nada adianta, nada. E como meu trabalho é ver o mal do mundo, um dia a depressão bate. A náusea - não a do Sartre, mas a minha. Não aguento mais ver a cara do Lula, o homem que não sabe de nada, talvez nem conheça a Rosemary, não aguento mais ver o Sarney mandando no País, transformando-nos num grande "Maranhão", com o PT no bolso do jaquetão de teflon, enquanto comunistas e fascistas discutem para ver quem é mais de "esquerda" ou de "direita", com o Estado loteado por pelegos sem emprego, não suporto a dúvida impotente dos tucanos sem projeto; não dá mais para ouvir quantos campos de futebol foram destruídos por mês nas queimadas da Amazônia, enquanto ecochatos correm nus na Europa, fazendo ridículos protestos contra o efeito estufa; não aguento mais contar quantos foram assassinados por dia, com secretários de segurança falando em "forças-tarefas" diante de presídios que nem conseguem bloquear celulares, não suporto a polêmica nacionalismo-pelego x liberalismo tucano, tenho enjoo de vagabundos inúteis falando em "utopias", bispos dizendo bobagens sobre economia, acadêmicos decepcionados com os 'cumpanheiros' sindicalistas, mas secretamente fiéis à velha esquerda, que só pensa em acabar com a mídia livre, tremo ao ver a República tratada no passado, nostalgias masoquistas de tortura, indenizações para moleques, heranças malditas, ossadas do Araguaia e nenhuma reforma no Estado paralítico e patrimonialista, não tolero mais a falta de imaginação ideológica dos homens de bem, comparada com a imaginação dos canalhas, o que nos leva à retórica de impossibilidades como nosso destino fatal e vejo que a única coisa que acontece é que não acontece nada, apesar dos bilhões em propaganda para acharmos que algo acontece. Odeio a dúvida de Dilma, querendo fazer uma política modernizante, mas batendo cabeça para o PT, esse partido peronista de direita.

Não aturo a dúvida ridícula que assola a reflexão política: paralisia x voluntarismo, processo x solução, continuidade x ruptura; deprimo quando vejo a militância dos ignorantes, a burrice com fome de sentido, balas perdidas sempre acertando em crianças, imagens do Rio São Francisco com obras paradas e secas sem fim, o trem-bala de bilhões atropelando escolas e hospitais falidos, filas de doentes no SUS, caixas de banco abertas à dinamite, declarações de pobres conformados com sua desgraça na TV; tenho engulhos ao ver a mísera liberdade como produto de mercado, êxtases volúveis de 'descolados' dentro de um chiqueirinho de irrelevâncias, buscando ideais como a bunda perfeita, bundas ambiciosas querendo subir na vida, bundas com vida própria, mais importantes que suas donas, odeio recordes sexuais, próteses de silicone, pênis voadores, sucesso sem trabalho, a troca do mérito pela fama, não suporto mais anúncio de cerveja com louras burras, abomino mulheres divididas entre a 'piranhagem' e a 'peruice', repugnam-me os sorrisos luminosos de celebridades bregas, passos de ganso de manequim, notícias sobre quem come quem, horroriza-me sermos um bando de patetas de consumo, rebolando em shoppings assaltados, enquanto os homens-bomba explodem no Oriente e Ocidente, desovando cadáveres na Palestina e em Ramos, ônibus em fogo no Jacarezinho e Heliópolis, a cara dos boçais do Hamas querendo jogar Israel no mar e o repulsivo Bibi invadindo a Cisjordânia, o assassino pescoçudo Assad eliminando o próprio povo, enquanto formigueiros de fiéis bárbaros no Islã recitam o Alcorão com os rabos para cima, xiitas sangrando, sunitas chorando, tudo no tão mal começado século 21, século 8.º para eles ainda, não aguento ver que a pior violência é nosso convívio cético com a violência, o mal banalizado e o bem como um charme burguês, não quero mais ouvir falar de "globalização", enquanto meninos miseráveis fazem malabarismo nos sinais de trânsito, cariocas de porre falam de política e paulistas de porre falam de mercado, museus pós-modernos em forma de retorcidos bombardeios em vez da leveza perdida de Niemeyer, espaços culturais sem arte nenhuma para botar dentro, a não ser sinistras instalações com sangue de porco ou latinhas de cocô de picaretas vestidos de "contemporâneos", não aguento chuvas em São Paulo e desabamentos no Rio, enquanto a Igreja Universal constrói templos de mármore com dinheiro arrancado dos ignorantes sem pagar Imposto de Renda, festas de celebridades com cascata de camarão, matéria paga com casais em bodas de prata, políticos se defendendo de roubalheira falando em "honra ilibada", conselhos de ética formado por ladrões, suplentes cabeludos e suplentes carecas ocultando os crimes, anúncios de celulares que fazem de tudo, até "boquete"; dá-me repulsa ver mulheres-bomba tirando foto com os filhinhos antes de explodir e subir aos céus dos imbecis, odeio o prazer suicida com que falamos sem agir sobre o derretimento das calotas polares, polêmicas sobre casamento gay, racismo pedindo leis contra o racismo, odeio a pedofilia perdoada na Igreja, vomito ao ver aquele rato do Irã falando que não houve Holocausto, cercados pelas caras barbudas da boçal sabedoria de aiatolás, repugnam-me as bochechas da Cristina Kirchner destruindo a Argentina, a barriga fascista do Chávez, Maluf negando nossa existência, eternamente impune, confrange-me o papa rezando contra a violência com seus olhinhos violentos, não suporto Cúpulas do G20 lamentando a miséria para nada, tenho medo de tudo, inclusive da minha renitente depressão, estou de saco cheio de mim mesmo, desta minha esperançazinha démodé e iluminista de articulista do "bem", impotente diante do cinismo vencedor de criminosos políticos.

Daí, faço minha a dúvida de Cole Porter: devo pedir ao garçom uma pílula de cianureto ou uma "flute" de champagne rosé?

Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-nausea-,971949,0.htm



segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

E você, faria o quê?

Por Dorrit Harazin - O Globo - 09/12/2012


Início da tarde de segunda-feira passada em Nova York. Na estação de metrô da Rua 47 com Sétima avenida, um morador de rua arruma encrenca com um desconhecido na plataforma da linha Q. Cena
urbana corriqueira num sistema de transporte utilizado diariamente por 5,2 milhões de usuários.

Após uma altercação rápida, o encrenqueiro empurra o senhor de 58 anos para o fosso de trilhos da estação. Na plataforma, alguns passageiros gritam, outros agitam os braços ou ouvirem o apito do trem. Mas o condutor já nada pode fazer. A vítima também não — restou-lhe a eternidade de quinze segundos para ver o vagão de frente.

No dia seguinte o tabloide “New York Post” estampou uma foto de página inteira que mostra o trem adentrando a estação com seus dois faróis a iluminar a tragédia anunciada. No fosso, vê-se a vítima de costas voltada para o vagão, a tentar erguer-se para a plataforma. Os últimos poucos metros ainda os separam. Sobre a imagem, um título em letras garrafais: “CONDENADO — empurrado sobre os trilhos, este homem vai morrer.”

A partir daí o morto foi esquecido, tragado por outra polêmica: é dever do fotógrafo — profissional ou amador — intervir quando uma tragédia se apresenta à sua frente? É jornalismo ou voyeurismo induzido publicar uma imagem de morte iminente, de impacto previsível sobre a emoção e a imaginação do leitor?

A questão não é nova. De Walter Benjamin (“Pequena história da fotografia”) ao recém-publicado “About
to Die: How News Images Mode the Public” (ainda sem tradução no Brasil), de Barbie Zeliger, passando pelo clássico de Susan Sontag (“Diante da dor dos outros”), a complexa relação entre fotojornalismo e humanidade continua a atormentar.

Fotografias do Holocausto, da Revolução Cultural chinesa, de linchamentos de negros nos Estados Unidos,
de genocídios ou corpos que despencaram das Torres Gêmeas são perpetuamente analisadas sob este
prisma.

Um caso citado à exaustão como exemplar desse impasse moral é o do sul-africano Kevin Carter, autor da foto premiada com o Pulitzer de 1993. A imagem mostra uma menina africana esquálida, à beira da inanição, acocorada num chão empoeirado do Sudão. Atrás dela, na mesma terra batida, um abutre quase maior do que a menina está à espreita.

Carter contou que permaneceu imóvel por 20 minutos à espera de que a ave abrisse as asas para melhor
compor o cenário do horror. Mas o urubu não se mexeu. Ainda assim, a imagem tornou-se ícone e catapultou o autor para a fama.

Junto com a fama veio a cobrança: por que ele não largou a câmera e foi socorrer a menina? Carter suicidou-se um ano após receber o Pulitzer e são frequentes as associações entre uma coisa e outra. Elas são indevidas, por simplistas.

Sua vida extraprofissional sempre fora sujeita a tormentas profundas. Seus muitos anos de coberturas de
tragédias humanas, narradas em parte num livro obrigatório sobre o tema (“Clube do bangue-bangue”, de Greg Marinovich e João Silva), apenas agravaram o quadro.

Agora, foi com ímpeto de justicialismo moral que a opinião pública se voltou contra Umar Abbasi, o autor
da foto do morto no metrô.

De acordo com sua versão do ocorrido, naquela segunda-feira ele havia concluído um serviço para o “Post” e entrara na estação com uma mochila contendo 10kg de equipamento nas costas. Trazia a câmera na mão, como sempre.

Em determinado momento, ouviu uma grande agitação na plataforma mais à frente. Levou alguns segundos
até entender o que ocorria. “Ao ver as luzes da composição à distância me ocorreu alertar o maquinista disparando o flash. Bati as chapas segurando a câmera com meu braço estendido, longe dos olhos”, relatou. Pelas suas contas, disparou o flash 49 vezes, sem focar nem mirar no homem nos trilhos, prática corriqueira de quem não tem visão direta do objeto a ser fotografado.

Abbasi não se conforma em ser alvo, sozinho, do linchamento moral. Com razão. Nem um único passageiro
da plataforma se aproximou do fosso para tentar içar a vítima a tempo; apenas gritavam para que ela saísse
dos trilhos. Pior: praticantes da cultura da imagem instantânea, muitos ainda sacaram seus smartphones
e se puseram a fotografar o corpo sendo retirado após o choque. Apenas (ainda) não as revenderam.

Passada uma semana de estridência nas redes sociais, o autor do empurrão fatal foi identificado e preso e
Abbasi recebeu algum respiro. Afinal, a obrigação moral de intervir ou não deveria ser indistinta para fotógrafos ou meros transeuntes. São decisões tomadas em frações de segundos diante de situações extremas que nem sempre seguem a lógica da razão. Que o digam as inúmeras vítimas de assalto no Brasil que reagem de forma imprevisível.

“Estamos falando de meros reflexos. Você está no piloto automático e nem sempre atua de forma racional”,
declarou em defesa de Abbasi o britânico Stuart Franklin, ex-presidente da agência Magnum e autor da famosa foto do manifestante chinês que enfrentou a fileira de tanques na Praça da Paz Celestial, em 1989.

Por sorte, nem todos os bípedes têm reflexos iguais. Cinco anos atrás, um jovem estudante de cinema perdeu a consciência por alguns segundos e caiu nos trilhos de uma estação de metrô do Harlem. O operário da construção civil Wesley Autrey, de 51 anos, estava na plataforma com as filhas de 4 e 6 anos de idade. Num impulso, entregou as meninas a um desconhecido a seu lado e saltou para o fosso. Ali, arrastou o jovem desacordado para o vão dos trilhos, de meio metro de profundidade, e o cobriu com o próprio corpo. Assim permaneceu até a parada do trem, que estacionou 2,5cm acima de ambos. Foram resgatados 40 minutos depois, com pouquíssimos machucados. Autrey é saudado e reconhecido até hoje como o “Herói do Metrô”.

Na época, ganhou um jipe Patriot, uma bolsa de estudos para cada filha, várias comendas e presentes. Continua trabalhando como operário. Considera-se um homem feliz.

Dorrit Harazim é jornalista

domingo, 9 de dezembro de 2012

Ainda existem heróis?

Por Helena Celestino - O Globo - 09/12/2012

Passaram-se cerca de 22 segundos entre o primeiro grito e o momento em que o trem atingiu o homem. No país do mítico John Wayne e do indestrutível Super-Homem, nenhum herói apareceu para evitar a tragédia, ninguém naquela plataforma botou de lado o medo e escolheu agir para salvar o cara.

O que você faria? O fotógrafo freelancer R. Umar Abassi registrou a cena. Muitas vezes. Na versão dele, disparou o flash, freneticamente, na esperança de alertar o maquinista e fazê-lo parar o trem a tempo. Nem olhou as fotos, entregou o chip da memória na redação e só reapareceu dois dias depois para se defender das críticas.

“A verdade é que eu não conseguiria alcançar aquele homem”, argumenta. Nas imagens captadas pelo fotógrafo, as pessoas na estação de metrô também pareciam imobilizadas. Testemunhas contam que muitos gritaram, acenaram, a maioria sacou o celular e filmou.

A polícia usou as imagens para prender o assassino, um morador de rua, conhecido pelos comerciantes de Times Square, a quem ajudava a montar e desmontar barracas, em troca de US$ 10 a US$ 40. Todos viram o bate-boca dele com Suk Han e, momentos depois, o empurrão para a morte. “Foi tudo tão rápido”, repete o fotógrafo.

Tirar a foto pode ser quase um reflexo, acha Aypery Karabuda, diretora de imagem da maior agência do mundo, a Thomson Reuters. “Vender é outra história e a decisão de publicar merece uma reflexão”, diz.

O tratamento dado pelo “New York Post” à imagem não foi intempestivo. Levou em conta o impacto comercial e o apelo emocional da foto, publicada dois dias seguidos na capa do tabloide, com o mesmo título: “Este homem está prestes a morrer”. Reproduzida infinitamente em programas de televisão, mídias sociais e blogs, a primeira página do jornal foi quase unanimemente considerada de extremo mau gosto. Não tem sangue, mas é chocante a exploração da luta solitária do homem para escapar da morte, bem no centro de uma das cidades mais movimentadas do mundo. O venerando “New York Times” também foi acusado de ultrapassar as fronteiras do bom gosto há poucos meses por publicar a foto do embaixador dos EUA, Christopher Stevens, sendo carregado morto na Líbia. A imagem não tinha uma gota de sangue mas reproduzia a desproteção do americano que acabara de morrer, longe de casa, no meio de um ataque violento. Foi um choque nos EUA, passou sem despertar maior atenção no Brasil.

Jornalistas, especialmente fotógrafos, são acusados de indiferença diante do perigo e da miséria ao trabalharem em situações extremas, como guerras, tragédias naturais, atentados. Não é simples saber o momento de deixar a câmera ou o gravador de lado e tentar ajudar.

“Não tenho regras, só quem está vivendo o momento pode saber”, disse o jornalista Anderson Cooper, uma estrela da CNN, acostumado a ver a morte de perto no Oriente Médio, explicando-se para o fotógrafo que documentara o crime no metrô da Rua 49.

É um fantasma que assombra todo correspondente de guerra e certamente a maioria dos repórteres durante a cobertura de tragédias. Radhika Chalassi, uma freelancer cobrindo a guerra civil no Sudão, foi obrigada a fazer uma escolha dramática que relembra a cada nova cobertura.

“Até hoje, não sei se necessariamente fiz a coisa certa”. Em depoimento ao “Guardian”, ela conta que fora com um grupo de fotógrafos a um campo de refugiados e todos se depararam com umas crianças sobreviventes, sozinhas no meio de lugar nenhum. Queria levar os meninos no carro com ela, os colegas acharam que seria perigoso, optou por avisar a um funcionário da Cruz Vermelha. No dia seguinte um jornalista encontrou crianças no mesmo lugar, impossível saber se eram outras ou as mesmas.

Novas tecnologias criam novas fronteiras éticas. Numa era em que todos têm uma câmera na mão, novos horrores serão registrados em massa em câmeras de segurança ou celulares. O direito à informação é uma conquista, mas solidariedade, compaixão e emoção fazem o mundo melhor.

Fonte:  http://oglobo.globo.com/mundo/ainda-existem-herois-6986791

Estranha forma de vida

Por Rosiska Darcy de Oliveira - O Globo - 08/12/2012

Como o competidor não dorme, para ser competitivo há que ser insone. Corre-se cada vez mais para não sair do lugar. Quem não aguenta o ritmo, enfarta


Os tempos que correm, correm para onde? Pergunta que não cala quando se instala a contradição entre os instrumentos do bem-estar e o real bem-estar, minando a qualidade de vida de todos. Os engarrafamentos que paralisam a cidade e que pioram a cada dia são o sintoma mais visível desse paradoxo. Quem sonhou ter um carro anda hoje no Rio de Janeiro na velocidade de um lombo de burro. Porque todos querem rapidez, ninguém se mexe.

Nos aeroportos brasileiros, corre-corre, atrasos e voos anulados, o estresse que daí resulta diminui substancialmente as vantagens da viagem de avião. Os ônibus estão ganhando a corrida com a Ponte Aérea, a tartaruga ultrapassando a lebre.

No plano da psicologia individual, a corrida contra o tempo é o leitmotiv da vida urbana. Dorme-se pouco, come-se rápido, fazem-se várias coisas ao mesmo tempo — cozinhando, vê-se televisão e fala-se no celular — estratégia batizada de multitarefas. O sociólogo alemão Helmut Rosa, apoiado em estatísticas, constata que a depressão tornou-se uma doença urbana globalmente epidêmica. Na origem, a fome de tempo.

A obviedade, constantemente repetida, de que as novas tecnologias aceleram o ritmo do cotidiano encobre o fato que elas nascem de um fascínio pela rapidez que sempre fez parte das ambições humanas. O e-mail, sublime invenção, tornaria a comunicação mais rápida se o volume da correspondência se mantivesse estável. Porque mais rápida, cresceu exponencialmente.

A Web, contrariamente ao esperado, fez-se devoradora de tempo. Quanto mais esse fascínio pela rapidez é satisfeito, mais nos aproximamos de seu limite fatal, o esgotamento das 24 horas do dia, não só em sua dimensão de tempo em que se acotovelam atividades desejadas e tarefas a cumprir como também em sua dimensão de esgotamento psicológico, a capacidade humana de absorver e processar informação.

A internet propicia a presença simultânea em uma infinidade de universos, uma vivência múltipla e sem continuidade. Se por um lado isso abre horizontes, informa e diverte, por outro provoca uma indigestão mental ou, no caso extremo de viciados na rede, leva à overdose. Para esses, já está à venda um aplicativo que bloqueia o uso da rede depois de um tempo determinado.

Ver no telejornal as imagens de um show de rock enquanto corre embaixo da tela uma legenda noticiando a descoberta de centenas de corpos mutilados na Síria exige uma inusitada negociação de sentimentos. Instala-se uma não discriminação que tudo aplaina.

Canais de informação dividem suas telas em quatro para multiplicar a possibilidade de imagens e dados. Assim esperam acompanhar a performance das bolsas cuja unidade de tempo de operação é inferior a um segundo. Esse exemplo flagra a força do princípio da competição, pano de fundo da aceleração. Esse princípio que inspira a economia se alastra pelo conjunto da vida: a luta pelos empregos, pelos bens de consumo, pela posição social. Como o competidor não dorme, para ser competitivo há que ser insone. Como na prova de esforço, corre-se cada vez mais para não sair do lugar. Quem não aguenta o ritmo, enfarta.

Não se trata de demonizar a tecnologia que, indiferente, serve ao que as sociedades definem como necessidades. São instrumentos adaptados ao desejo de aceleração que todos, aprendizes de feiticeiro, imprimimos ao cotidiano.

Engarrafamentos de pesadelo, acampamentos nos aeroportos, depressões epidêmicas são sintomas de uma mesma disfunção, do esgotamento de um modo de vida a ser repensado, com a cabeça no futuro, sem saudosismos.

A título de exemplo, as horas de ponta do trânsito existem porque todos entram e saem do trabalho às mesmas horas, estendendo a todo e qualquer trabalho a lógica da fábrica. E se, em vez de apenas alargar ruas — solução espacial — se pensasse o espaçamento dos horários de expediente — solução temporal? Essa ideia inovadora que age não sobre o engarrafamento, mas sobre os tempos da cidade, foi testada com sucesso em Milão, envolvendo empresas, escolas e prefeitura em uma solução de custo zero, fora do marco de referência do urbanismo convencional.

Quando um sistema entra em colapso duas atitudes são recomendáveis: passar recibo de que se trata de um colapso e buscar soluções fora de sua lógica. Nenhum sistema se regenera usando os mesmos recursos e soluções que o fizeram degenerar. O que está em questão não é tanto este ou aquele aspecto da aceleração que afeta nossas vidas e sim a lógica dessa estranha forma de vida. Em tela de juízo, a lógica do sempre mais e mais rápido.

Fonte: http://oglobo.globo.com/opiniao/estranha-forma-de-vida-6972437

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Em poucas palavras

Por Zuenir Ventura - "O Globo" - 17/11/2012

"O homem não veio do macaco. Vem vindo." Essa é uma das centenas de frases de Dirceu Ferreira, um humorista mineiro que foi descoberto por Ziraldo nos anos 60, colaborou no "Pasquim", na "Folha de S.Paulo" e no "Estado de Minas" e era admirado por Millôr, Jaguar e Henfil, que se inspirou nele para criar o personagem Ubaldo, o paranoico, aquele que se sentia sempre perseguido pelo regime militar. Publicou livros como "Édipo é a mãe", "Minhas Marílias e seus nomes de guerra", "Mas podem me chamar de Woody Allen". Depois, Dirceu sumiu, voltou para Araxá, sua cidade natal, e dedicou-se a trabalhos sociais. Durante 20 anos ficou praticamente sem publicar. Fui conhecê-lo na semana passada no festival literário Fliaraxá, onde lançou sua obra mais recente: "Tirem a piscina que eu quero pular", com ilustrações de Nani.

Tostão, o ex-craque de futebol e hoje craque da crônica, fez o prefácio do primeiro livro do amigo, "Minhas
Marílias e seus nomes de guerra", que qualifica de "uma delícia" e que, segundo ele, só não fez sucesso de
público porque "Dirceu nunca foi um bom marqueteiro". Mas teria sido muito bem recebido pelas "pessoas do ramo". O humor de Dirceu faz pensar fazendo rir, e é impiedoso, às vezes corrosivo, quando se volta contra si mesmo:

"Eu queria ter tido um irmão gêmeo, prá não ter pena só de mim."

"Gosto de mim. É que me contento com pouco."

"Diante do espelho, a indagação: Quem é esse cretino, velho e feio que só sabe me imitar?"

"Nunca vou entrar no céu. Minha esperança é um telão do lado de fora."

"Sou um bom exemplo de mau exemplo."

Ele gosta de brincar com a polissemia vocabular e os duplos sentidos, mas seus trocadilhos não são meros
jogos de palavras. Escondem um ceticismo em relação à vida e à natureza humana. Uma de suas técnicas é
desmontar ideias feitas e promover a gozação de si e dos outros:
"O cão é o maior amigo do homem. O que o deixa muito mal."

"Ele é heterossexual, mas ainda não teve coragem de contar pros pais."

"O cão é o maior amigo do homem. O que o deixa muito mal."

"Ele é heterossexual, mas ainda não teve coragem de contar pros pais."

"Viver é uma doença incurável."

"A decadência moral é mais lamentável do que a física. Mas ninguém morre por causa dela."

"Parentes hoje em dia são aqueles que identificam os cadáveres."

"Atrás de um grande homem existe uma mulher que não consegue ver o filme."

De hábitos saudáveis e de bem com a vida, Alcione Araújo caminhava diariamente pela orla de Ipanema-
Leblon. Era difícil imaginar que um ataque cardíaco estava à espreita dessa adorável figura. Diante disso, um
amigo me ligou: "Para de andar! Os que andam estão morrendo todos."

Fonte: "O Globo"

Impostos 'invisíveis' respondem por até 93% do preço de produtos e serviços no Brasil


Por Bianca Pinto Lima e Mariana Congo / Pesquisa: Fernando Zilveti (GV Administração), Nelson Beltrame (FIA/Fipecafi) e Viviane Morais (WTS do Brasil) / Arte: Pedro Bottino


Estudo exclusivo para o 'Estado' analisa 25 itens e mostra como os tributos indiretos afetam a renda e o consumo de uma família da classe média.

Veja mais em:
http://economia.estadao.com.br/especiais/impostos-invisiveis-respondem-por-ate-93-do-preco-de-produtos-e-servicos-no-brasil,179562.htm




domingo, 14 de outubro de 2012

Rota do Pacífico traz negócios e devastação

Comunidades vivem expansão de oportunidades e do crime


Reportagem especial*


Há um ano foi inaugurada a megaestrada Interoceânica Sul, de 5.404 quilômetros de extensão, que conecta o Pacífico peruano com o Atlântico brasileiro. Com ela, nasceram centenas de oportunidades de riqueza e desenvolvimento, mas também grandes desafios ambientais e sociais. A estrada abriu uma vasta área da floresta mais cobiçada do planeta à economia mundial. Milhares de pessoas estão chegando para habitá-la e também muitos investidores de países tão distintos quanto China, Rússia, França, México e Chile, em busca de negócios.

VEJA TAMBÉM

O material completo com vídeos e fotos pode ser visto no site da Connectas (link abaixo)

http://www.connectas.org/amazonas/pt/index.html

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A tríplice fronteira Brasil, Peru e Bolívia, antes povoada por árvores centenárias, vida selvagem e cerca de 100 mil habitantes em suas áreas mais conservadas, agora se encheu de ruído: a música dos novos povoadores, o zumbido das motosserras, o movimento dos comércios de todo tipo e o estrondo de potentes motores arrancando o ouro enchem o cenário.

O Brasil, a sexta economia do mundo, precisava de uma saída para exportar seus produtos aos mercados asiáticos no Pacífico e foi o principal patrocinador da Interoceânica. A estrada era ainda uma maneira de integrar as cidades mais remotas de cada um desses três países: Puerto Maldonado, no Peru; Cobija, na Bolívia, e Rio Branco, no Brasil.

A organização não governamental de jornalismo Connectas percorreu cerca de 700 quilômetros da Interoceânica para ver quais foram as mudanças que a estrada trouxe para o meio ambiente e para a vida das pessoas.


Na tríplice fronteira, três forças disputam o desenvolvimento. De um lado estão os conservacionistas, que querem que a Amazônia continue intacta e sua biodiversidade somente sirva aos pesquisadores e ao sustento dos habitantes tradicionais. De outro estão os desenvolvimentistas, que acreditam ser possível extrair valiosos recursos, como a madeira e o ouro, de forma racional, com supervisão estatal. Também veem um potencial para expandir a fronteira agropecuária, derrubando e queimando floresta. E, na terceira ponta, estão os destruidores, que já estão tirando os minerais e cortando as árvores sem permissão das autoridades, em especial no Peru e na Bolívia.

A estrada conectou a selva com a modernidade e, assim, atraiu milhares de novos habitantes. Os pequenos e tranquilos povoados não conseguiram se preparar para a migração massiva. Nos últimos cinco anos, as pequenas populações duplicaram o número de habitantes, como o caso de Puerto Maldonado, que hoje se vê em apuros para acomodar 200 mil pessoas. Não tem os serviços necessários e, na aglomeração, o crime começa a crescer. A interconexão também abriu caminho para o narcotráfico e o tráfico de pessoas em uma espiral que, reconhecem as autoridades locais, ameaça a antes tranquila região.

A Interoceânica é como um cordel que entrelaça todas essas realidades. Enquanto isso, o intercâmbio comercial, sua principal razão de existir, começa a dar resultados. Até o momento, os produtos da região do Acre, como a soja, tinham de percorrer 26,3 mil quilômetros para chegar à China, com uma cara passagem obrigatória pelo Canal do Panamá. Com a nova estrada, essa distância foi reduzida a 17,5 mil quilômetros. No outro sentido, o Peru pode enviar seus produtos a menores custos para a África e a Europa, embarcando-os diretamente nos portos brasileiros no Atlântico. Espera-se que a Interoceânica também melhore o comércio entre Brasil e Peru, que hoje praticamente têm fronteiras abertas, e entre esses países com a Bolívia, que está a um passo da estrada. Também o Chile espera ver crescer suas oportunidades comerciais, uma vez que com a estrada terá acesso a um mercado de 200 milhões de consumidores brasileiros.

Apesar das expectativas, pode-se viajar quilômetros sem que se veja uma alma viva. Talvez ainda seja cedo para esperar um vibrante tráfego de caminhões carregados de produtos apenas um ano após a inauguração. Em média, a Interoceânica tem um fluxo de 160 veículos de carga por mês - a maior parte levando madeira para o Pacífico - e cerca de 640 veículos de passageiros, segundo disseram funcionários do pedágio no quilômetro 73, no pampa peruano.

No posto da alfândega peruana, o funcionário de turno foi ainda mais pessimista com as cifras: disse que, nos últimos três meses, não passaram mais de 300 caminhões em direção ao Peru com mercadorias variadas, como tubulação e maquinaria, além de ferramentas para os garimpeiros do pampa, muitos dos quais exploram ouro sem permissão. Segundo ele, o que mais se transporta para o Brasil é cimento e alguns poucos produtos agrícolas.

A Bolívia, em compensação, vem tirando vantagem econômica da estrada. Uma vez por semana uma caravana de nove carros-tanque parte carregada de gasolina da capital boliviana, La Paz, atravessa o Peru por Juliaca, pega toda a Interoceânica, passa pelo Brasil para logo retornar à Bolívia e fornecer combustível à cidade de Cobija. A enorme volta se justifica pelas péssimas condições das estradas entre os Andes e a selva na Bolívia. Mas, como a gasolina é mais barata na Bolívia do que no Brasil, militares têm de proteger o descarregamento em Cobija, para evitar que o combustível seja contrabandeado de volta para o Brasil.

São três as razões que explicam por que está demorando para decolar a sonhada bonança comercial que se acredita trará a estrada entre os três países. A primeira é que não há acordos para que o cruzamento de fronteira seja mais organizado. Os peruanos reclamam de controles excessivos. Carlos Miguel Rios, administrador da transportadora Civa, uma das que mais transitam na região, conta que, para cruzar a fronteira, tem de apresentar certificado de febre amarela, fazer imigração na fronteira e logo ter outro controle em Rio Branco, além dos registros da alfândega. "O trâmite é muito enrolado. Às vezes, argumentam razões fitossanitárias e a gente não pode passar com a mercadoria. Aqui, o único beneficiado é o narcotráfico, que agora ficou com a estrada expressa", disse o transportador.

A segunda é que, na teoria, fica barato levar a carga do Brasil aos portos peruanos, mas como o veículo que leva a carga costuma retornar vazio, pois este país exporta bem menos, o frete fica caro. O saldo comercial é negativo para o Peru. Em 2011, as empresas brasileiras venderam US$ 2.45 bilhões ao país, enquanto o Peru exportou US$ 1.27 bilhão. Por último, não é fácil para os motoristas guiar os gigantescos caminhões brasileiros pelas estreitas estradas andinas peruanas no trecho que vai para Juliaca, no sul do país, onde algumas curvas são tão estreitas que até os ônibus de passageiros têm dificuldade em passar.

* Reporagem especial: A reportagem foi realizada pela Connectas, organização jornalística sem fins lucrativos que privilegia a aliança com profissionais e meios de comunicação e promove a produção, o intercâmbio, a capacitação e a difusão de informação sobre temas para o desenvolvimento das Américas.

Contatos: via Twitter (@ConnectasOrg) ou pela página oficial no Facebook.

Fonte: http://economia.estadao.com.br/noticias/economia+brasil,rota-do-pacifico-traz-negocios-e-devastacao,130613,0.htm
















quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Uma etapa de mudança

Por Míriam Leitão - "O Globo" - 11/10/2012

Ele é negro. Acima de qualquer dúvida razoável, como dizem os juízes. Ele é negro e não contemporiza para facilitar sua aceitação. Joaquim Benedito Barbosa foi eleito ontem presidente do Supremo Tribunal Federal. Elogiou-se a rotina de eleição pelos pares e a alternância no cargo. Ainda melhor será o momento em que o fato de um negro estar lá nem notícia será, de tão rotineiro.


É assim que o país avança: quebrando paradigmas. O ministro Joaquim vai errar e acertar nos próximos dois anos, como nos últimos nove. Seus antecessores também erraram e acertaram. Não é herói — ele até se define como anti-herói — mas virou símbolo de um avanço extraordinariamente importante para o Brasil. O espaço maior que vem sendo ocupado pelos negros em instâncias do poder, até hoje majoritariamente brancas, é uma vitória que pertence ao país como um todo. Multiétnico e miscigenado, o Brasil ainda assim criou distâncias sociais e as manteve com a mais eficiente das estratégias: negar a existência da discriminação.

Joaquim votou no PT nas últimas três eleições, como revelou à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, e hoje é relator do processo que está condenando lideranças emblemáticas do partido. Foi capaz de separar de forma cirúrgica sua convicção técnica de juiz de quaisquer outras considerações que poderiam interferir em sua decisão.

O ministro tem uma história de vida de superação. Foi pobre, construiu sua ascensão pela educação, se globalizou indo para algumas das melhores universidades da Europa e dos Estados Unidos. Tem currículo invejável e competência inequívoca.

Debruçou-se, entre outros temas, sobre uma política pública que no Brasil ainda produz muita controvérsia: a ação afirmativa. Poderia fugir do assunto por temer ser instalado num gueto teórico. Poderia negar, com sua história de vida de superação, que este seja o melhor caminho para a construção de um país com uma elite também multiétnica. Mas estudou ação afirmativa, escreveu um livro técnico defendendo a política e não ficou preso ao tema. Quando a ação das cotas chegou ao Supremo Tribunal Federal, seu livro foi citado, por exemplo, no voto do ministro decano Celso de Mello. Ao fim, as cotas foram aprovadas por unanimidade, porque o voto do ministro relator Ricardo Lewandowski foi seguido por todos.

Não há uma contradição entre o caminho que o levou ao topo e as ações afirmativas que tornarão o Brasil, no futuro, um país em que outros vençam as barreiras que ele venceu. O currículo dele foi construído com muito esforço, mas nenhum presidente antes do Lula viu méritos em outros juízes negros. A invisibilidade do discriminado é uma arma antiga para manter as distâncias sociais. Se o ex-presidente Lula tivesse ficado prisioneiro da mesma armadilha de ver os méritos apenas do grupo dominante, o Supremo, talvez, fosse ainda hoje um monopólio dos brancos. Joaquim, como lembrou Celso de Mello, é o 50º presidente da Corte desde o Império, o 44º da República. E será o primeiro negro a se sentar na cadeira de presidente.

Muitos dizem que o importante não é que ele é negro é que tem méritos. Sem dúvida. Mas por que houve uma tão longa fila de meritórios apenas brancos? Porque não houve igualdade de oportunidades.

Há dez anos um blog do jornal Washington Post pediu a jornalistas de vários países que escrevessem quais eram as forças emergentes em cada país que teriam mais poder em 20 anos. Escrevi que no Brasil essas forças emergentes eram as mulheres e os negros. Hoje, o Brasil é presidido por uma mulher e, em breve, o Judiciário, por um negro. O Brasil muda para melhor.

Fonte: http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2012/10/11/uma-etapa-da-mudanca-469721.asp




segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O mais grave dos riscos

Por Miriam Leitão - "O Globo" - 30/09/2012

O IBGE revelou uma notícia assustadora, mas não houve reação à altura. O Brasil tem um milhão quatrocentos e quinze mil crianças de 7 a 14 anos oficialmente analfabetas pelo registro da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (Pnad). E de 2009 a 2011 caiu — sim, é isso, caiu — o percentual de jovens de 15 a 17 anos na escola. Será que é assim que queremos vencer?


A vastidão da tragédia educacional brasileira não caberia nesta coluna, e arruinaria — querida leitora, caro leitor — este seu domingo. Por isso vamos pensar juntos apenas em alguns números. Fomos informados dias atrás pelo IBGE que em 2009 o Brasil tinha 85,2% de jovens de 15 a 17 anos na escola. O que equivale a dizer que 14,8% não estavam, e isso já era um absurdo suficiente. Mas em 2011, a Pnad descobriu que o número tinha piorado e agora só há 83,7%. Aumentou para 16,3% o total de jovens nessa faixa crítica que estão fora da escola.

Em qualquer país do mundo, que saiba a natureza do desafio presente, esses números seriam motivo para se fazer um escândalo, iniciar uma investigação, chamar as autoridades à responsabilidade. O ministro se desculparia, os educadores seriam entrevistados para saber como resolver o problema, os contribuintes exigiriam mais respeito com seus impostos, os pais se mobilizariam. Mas a notícia foi dada numa sopa de outros indicadores e sumiu por lá. Em alguns jornais foi destaque, em outros, nem isso.

Como assim que em 2012 o país fica sabendo que tem menos — e não mais — jovens onde eles deveriam estar? E mesmo assim não se assusta, não reage? Difícil saber o que é pior: se a notícia em si ou a falta de reação diante da notícia.

Os demógrafos já nos informaram que estão nascendo menos brasileiros, e que, por isso, a população vai parar de crescer. Os empresários estão dizendo que há um apagão de mão de obra, falta trabalhador qualificado. Nem que seja por uma mera questão econômica, de formação de trabalhadores, o país deveria exigir explicação das autoridades. Afinal, estamos jogando fora cérebros que serão necessários à economia.

Mas a educação, evidentemente, não é só para formação de trabalhadores, como se fossem peças de uma máquina. É a única estrada que leva as pessoas à realização do seu potencial, a única forma de realmente incluir o cidadão, a melhor maneira de fortalecer a democracia.

A taxa de analfabetismo no Brasil é considerada a partir de 15 anos. Com esse recorte etário, a taxa foi de 8,6% em 2011. Uma melhora em relação a 2009, quando era de 9,7%. Com mais de 15 anos temos 12,9 milhões de analfabetos.

Mas se formos considerar quem não está na conta — os de 7 a 14 anos — existem mais 1,4 milhão de analfabetos. O problema desse número é que ele derrota a ideia de que o analfabetismo é um problema herdado pelos erros passados do Brasil. De fato, ele é maior quanto mais alta for a idade. Mas esses dados mostram que o país está repetindo agora o mesmo desatino. Há analfabetos jovens, hoje. Meio milhão deles estão na área rural. Aliás a taxa de analfabetismo rural brasileiro é de 21%.

Eu queria não estragar o domingo de você que me lê. Então vamos concluir assim: ainda há tempo. Se o Brasil se apressar, pode correr atrás dos ainda analfabetos. Pode tentar trazer de volta os jovens que desistiram da escola. Alguns mais céticos dirão que não há mais tempo e o cérebro não educado na infância jamais terá de volta a habilidade necessária. São tantos os casos de superação. É quase tarde demais, mas ainda há tempo. Se o Brasil não se apressar esses jovens continuarão em seu desamparo.

Fonte: http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2012/09/30/o-mais-grave-dos-riscos-467687.asp



sábado, 29 de setembro de 2012

Afasta de nós essa crise

Por Zuenir Ventura - "O Globo" - 29/09/2012

A crise está na moda, pelo menos na Europa ou em alguns de seus países. Contra ela, têm saído às ruas portugueses, gregos e espanhóis em manifestações como as de Madri e Atenas, com direito a violenta repressão policial. Dá vontade de dizer: vocês são nós ontem. Também já gritamos “abaixo o FMI” e “o povo unido jamais será vencido”.


Quem nos anos 70 acompanhou a transição da ditadura para a democracia de Portugal e Espanha, contemporânea à nossa, dando-nos lições de competência política, ensinando-nos como atingir equilíbrio econômico sem hiperinflação, sem traumas, enfim, quem sentiu inveja do renascimento português, da movida madrilhenha e de todos os sinais da outrora pujante península ibérica, não se conforma com o que está acontecendo hoje.

Se os efeitos perversos do empobrecimento já são visíveis no campo social — presença de mendigos nas ruas, delinquência — imagine no terreno da cultura. Portugal cortou até o seu ministério, sem falar nas 40 fundações fechadas ou à míngua.

É estranho ler num jornal de Lisboa a previsão de que “2013 será o pior ano de nossas vidas”, como se 2012 tivesse sido muito melhor. Ou então no “El País”: “A cultura enfrenta o ano mais difícil da história da democracia”, tendo ao lado a informação de que os museus do Prado, da Reina Sofía e o Teatro Real — três ícones culturais — já sofreram cortes de até 65%.

Várias vezes voltei de Portugal entusiasmado com a opulência e a fartura de lá. Os portugueses gastavam de dar gosto. Pois é, foram além das chinelas. O euro da União Europeia era farto, mas um dia tinha que ser devolvido — com juros.

Como sabia disso, o governo é o principal responsável, não só o de agora como o do socialista José Sócrates, que em 2011 assinou o “memorando da Troika“ (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI), declarando ser um acordo “muito bom”, porque permitia controlar o déficit público sem mexer com o 13º salário, nem com o 14º, muito menos com os empregos, nem cortes, ou seja, uma maravilha: o contrário de tudo que está ocorrendo hoje.

Enquanto isso, leio que aqui 41% dos consumidores são ou já foram inadimplentes. Conheço pessoas de baixa renda ou sem recursos suficientes, comprando carro do ano, usando dois celulares, computador de último tipo, tudo pago com cartões de crédito em prestações intermináveis.

A exemplo dos portugueses de ontem, os brasileiros estão gostando de gastar. Não entendo de economia, mas, apesar das diferenças, não sei se será essa a maneira mais sensata de manter a crise afastada de nós.

Fonte: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2012/09/29/afasta-de-nos-essa-crise-por-zuenir-ventura-467770.asp

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Errei, sim

Por Joaquim Ferreira dos Santos - "O Globo" - 17/09/2012

Meu caro Artur Xexéo,
Achei de extrema correção ética seu gesto de vir a público, rasgar a camisa e abrir o peito ferido para a confissão de erro na deliciosa história de ter chamado de Roberto, num perfil de página inteira, um sujeito que era Ricardo. Foi uma peça de brilho e bom humor que já imagino servindo de tema nas escolas de Comunicação. Parabéns. Venho aqui para elogiar o colega, manifestar minha solidariedade, mas também cartar marra. Já errei mais, Xexéo. Foram tombos estrondosos e, cá entre nós, inevitáveis a quem abraça um trabalho desses.

Não quero te desestimular nem torcer contra, mas, tenha certeza, outros virão.

O jornalismo diário é dos maiores exercícios de humildade que o ser humano pode praticar. Pedimos informações como quem mendiga a subsistência, como quem cata latinhas no fim de um show de rock. Temos o reconhecimento constitucional de que não somos obrigados a saber nada em profundidade, sendo-nos indispensável apenas um estilo de escrever que exclua expressões como “sendo-nos” e a imensa curiosidade. Ela nos absolve para as perguntas mais elementares, renova o sangue para continuar a eterna busca por carne nova. Leia na minha camisa, Xexéo: “Eu nada sei, mas quero”.

Os pontos cardeais de nossa bússola existencial são Quem? Quando? Como? Onde? e Por quê? Com essas interrogações vamos longe. Sempre que abdiquei delas, errei feio — como vou demonstrar.

Meu saudoso pai, com os tamancos da objetividade que trouxe de Trás-os-Montes, não se conformava quando me flagrava na ignorância de alguma coisa. “Um jornalista, e não sabes?”, dizia. Pacientemente, eu redarguia, evidentemente usando outro verbo, com um “que tal encontrarmos uma boa fonte?”.

Não vejo outra definição para esse trabalho. Eu pergunto, você pergunta, e em seguida, como faz a empacotadora das Casas Bahia com os eletrodomésticos, nós empacotamos as respostas de um jeito bonito para o leitor.

Você deve conhecer, Xexéo, a piada de que a maneira mais prática de um jornalista se suicidar é saltando de cima de seu próprio ego. Acho que foi feita por quem nos olhou de longe. O Zuenir Ventura sempre me disse: “Jornalista não sabe nada, só sabe a quem perguntar”. O Elio Gaspari me corrigia sempre que eu apresentava um texto em que, à guisa de pretenso estilo, eu fazia umas perguntas para o leitor. Paciente, Gaspari cortava aquele brilhareco de garoto e ainda se dava ao trabalho de explicar: “O leitor te paga pra fazer perguntas ao entrevistado, não a ele”.

Errei, sim, Xexéo, manchei o meu nome sempre que não perguntei. Eu assinei, por exemplo, décadas atrás, uma nota anunciando a demolição implacável do restaurante Assirius, do Teatro Municipal. Ainda jovem e sem a humildade que a velhice e a profissão vão formatando, não perguntei nada a ninguém. Corri, açodado como imaginava ser o espírito da coisa, para colocar no chão o monumento, embora de gosto duvidoso, instalado no subsolo do teatro. Tratava-se, soube minutos depois de o jornal na rua, de um botequim, também na Rio Branco, mas na Praça Mauá, com o mesmo nome de Assirius.

Eu fracassei sempre que desprezei a humildade de checar a grafia exata de palavras duvidosas (já imprimi “bossal”, que de brincadeira talvez possa até significar “cheio de bossa”, para identificar um sujeito oposto, o “boçal”). Fracassei sempre quando tive a soberba da sabedoria, essa doença juvenil. Na semana passada mesmo, passei um texto inteiro elogiando a música “Bode velho”, que creditei exclusivamente a Sérgio Sampaio, quando ela também pertence ao grande letrista Sérgio Natureza.

Enfim, Xexéo, você não está só. Eu poderia escrever outras colunas sobre as erratas a que fui obrigado pela pressa, a ignorância e a ausência da pergunta certa à pessoa exata. Fico por aqui, na segurança de que quanto menos se escreve, menos erros se comete — e só quem não escreve viverá a glória do erro zero. Recentemente, numa crônica sobre o fim do “Jornal do Brasil”, quis fazer o elogio público de jornalistas com quem trabalhei lá e matei sem dó o coleguinha Luarlindo Ernesto, que graças a Deus continua entre nós.

Já foi o tempo em que colocávamos a culpa no revisor, mas, estes sim, estão praticamente mortos, e agora é tudo com quem assina. Erramos, tentaremos diminuir a taxa desse colesterol ruim com muito exercício, mas os equívocos continuarão assim mesmo, e o importante, Xexéo, é que os jornais façam como você fez, publiquem a retificação.

Definitivamente, não é verdade a outra piada, de que o médico pensa ser Deus, o jornalista tem certeza. Erramos, sim, manchamos diariamente o nosso nome, e eu não poderia terminar esse texto de solidariedade sem abraçar o colega de um grande jornal paulista. Ele foi obrigado a uma errata no dia seguinte à publicação de uma matéria que, num certo trecho, passava pela morte de Jesus Cristo. A coisa não tinha sido exatamente como ele descrevera no texto, e daí veio a retificação: “Diferentemente do publicado na edição de ontem, Jesus Cristo morreu crucificado e não enforcado”.

Que Deus o proteja, a errata o absolva e a sorte o persiga. Se tivesse enforcado Maomé, o jornalista estaria morto.

Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/errei-sim-6112268








terça-feira, 28 de agosto de 2012

Por linhas tortas

Por Arnaldo Jabor


"Os radicais de cervejaria ou de estrebaria não deram um escasso crédito de confiança a FHC, que veio com uma nova agenda"

Já começou o circo da propaganda eleitoral, o desfile de horrores da política brasileira. Será um trem fantasma de caras e bocas e bochechas que traçam um quadro sinistro do Brasil, fragmentado em mil pedaços — o despreparo, a comédia das frases, dos gestos, das juras de amor ao povo, da ostentação de dignidades mancas.

Os candidatos equilibram bolas no nariz como focas amestradas, dão “puns” de talco, dão cambalhotas no ar como babuínos de bunda vermelha, voando em trapézios para a macacada se impressionar e votar neles. Os candidatos têm de comer pastéis de vento, de carne, de palmito, buchada de bode e dizer que gostaram, têm de beber cerveja com bicheiros e vagabundos, têm de abraçar gordos fedorentos e aguentar velhinhas sem dente, beijar criancinhas mijadas, têm de ostentar atenção forçada aos papos com idiotas, têm de gargalhar e dar passinhos de rebolation quando gostariam de chorar no meio-fio — palhaços de um teatrinho absurdo num país virtual, num grande pagode onde a verdade é mentira e vice-versa.

Ninguém quer o candidato real; querem o que ele não é. A política virou um parafuso espanado que não rola mais na porca da vida social, mas todos fingem que só pensam no povo e não em futuras maracutaias.

O Brasil vive um momento de suspense, de dúvidas, do “será?” Haverá condenados no mensalão? Dilma vai conseguir governar? Ninguém sabe o que vai acontecer. Só nos resta o mau ou bom agouro, o palpite, a orelha coçando, o cara ou coroa.

A política brasileira anda por sustos. Meu primeiro susto foi em 1954.

Estou do lado do rádio e ouço o “Repórter Esso”: “O presidente Vargas acaba de se suicidar com um tiro no peito!”. O mundo quebrou com o peito de Getúlio sangrando, as empregadas correndo e chorando.

Estou no estribo de um bonde, em 1961. “O Jânio Quadros renunciou!”, grita um sujeito. Gelou-me a alma. Afinal, eu votara pela primeira vez naquele caspento louco (o avô “midiático” do Lula), mais carismático que o careca do marechal Lott. Eu já sentira arrepios quando ele proibiu biquínis nas praias. Tínhamos posto um louco no Planalto — e não seria o único...

Em 1964, dias antes do golpe militar — o comício da Central do Brasil. Serra estava lá, falando, de presidente da UNE. Clima de vitória do “socialismo” que Jango nos daria (até para fazer “revolução” precisamos do governo...). Tochas dos bravos operários da Petrobras, hinos, Jango discursando, êxtase político: seríamos a pátria do socialismo carnavalesco. Volto para casa, eufórico, mas, já no ônibus, passando no Flamengo, vejo uma vela acesa em cada janela da classe média, em sinal de luto pelo comício de “esquerda”. Na noite “socialista”, cada janela era uma estrelinha de direita. “Não vai dar certo essa porra...” — pensei, assustado. Não deu.

Ainda em 1964, festa do “socialismo” no teatro da UNE. Dia 31 de março, 11h da noite. Elza Soares, Nora Ney, Grande Otelo comemoram o show da vitória. No dia seguinte, a UNE pegava fogo, apedrejada por meus coleguinhas fascistas da PUC. Na capa da revista “O Cruzeiro”, um baixinho feio, vestido de verde-oliva, me olha. Quem é? É o novo presidente, Castelo Branco. Corre-me o arrepio na alma: minha vida adulta foi determinada por aquele dia. O sonho virou um pesadelo de 20 anos.

Depois, vem o Costa e Silva, sua cara de burro triste e, pior, sua mulher perua-brega no poder. Aí, começaram as passeatas, assembleias contra a ditadura. Costa e Silva tinha alguns traços populistas e resolveu dialogar com os líderes do movimento democrático. Uma comissão vai conversar com o presidente. Aí, outro absurdo — os membros da comissão se recusam a vestir paletó e gravata na entrada do palácio: “Não usamos gravatas burguesas!”, e o encontro fracassa. Ninguém lembra disso; só eu, que sou maluco e olho os detalhes.

Tancredo entrou no hospital e arrepiou-me o sorriso deslumbrado dos médicos de Brasília no “Fantástico”, amparando o presidente como um boneco de ventríloquo; tremeu-me o corpo quando vi que nossa História fora mudada por um micróbio em seu intestino.

Gelei ao ver o Sarney, homem da ditadura, posando de “oligarca esclarecido” na transição democrática, com seu jaquetão de “teflon”, até hoje intocado. Assustei-me com a moratória de 1987, aterrorizou-me a inflação de 80% ao mês.

E, depois, vejo a foto do Collor na capa da “Veja” — com todo mundo dizendo: “Ele é jovem, bonito, macho...”, revirando os olhos numa veadagem ideológica. Foi um período tragicômico, com a nação olhando pela fechadura da Casa da Dinda para saber do seu destino. Depois o período do impeachment, dos caras-pintadas.

Durante Itamar, a letargia jeca-tatu, só quebrada pela mudança na economia com o plano Real que FHC fez (que depois foi roubado pelo Lula, claro...) Aí, 1994, o ano da esperança, Brasil tetra na Copa e um intelectual da verdadeira esquerda subindo ao poder. Mas, meu medo histórico logo voltou, quando vi que a Academia em peso odiava FHC por inveja e rancor, criando chavões como “neoliberalismo”, “alianças espúrias” (infantis, comparadas com a era Lula). Os radicais de cervejaria ou de estrebaria não deram um escasso crédito de confiança a FHC, que veio com uma nova agenda, para reformar o Estado patrimonialista.

Durante o mandato, o próprio governo FHC cometeu seu erro máximo, que até hoje repercute — não explicou didaticamente para a população a revolução estrutural que realizava: estabilização da economia, lei de responsabilidade fiscal, privatizações essenciais, consolidação da dívida interna, saneamento bancário que nos salvou da crise de hoje, telefonia, tudo aquilo que, depois, Lula surripiou como obra sua. Foi arrepiante ver a mentira com 80% de Ibope.

Hoje o que me dá medo é ver que a tentativa de Dilma governar é sabotada por aqueles que achavam que ela seria apenas uma clone, uma cover do Lula, que esquentaria a cadeira para ele sentar em 2014. Hoje estamos vendo a cara verdadeira dos donos peronistas da CUT e dos funcionários mais bem remunerados, os “amigos do povo” que roubam em seu nome.

Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/por-linhas-tortas-5910153








quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Um artigo apócrifo por mim mesmo

Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo

Toda semana surge um novo artigo apócrifo, com meu nome... Toda hora um idiota me copia e joga na rede. Há vários; em geral sobre mulheres e amor. Um deles diz coisas como: "a mulher tem um cheirinho gostoso, elas sempre encontram um lugarzinho em nosso ombro."

E outro: "adoro celulite... qual é essa de bundinhas duras? Bunda mole é bonito". No dia seguinte, na rua, fui abordado por uma senhora fina que me declarou arquejante de orgulho: "Eu tenho bunda mole!" E saiu andando, em doce euforia.

Sou amado pelo que não escrevi. Há um site em que contei 23 artigos falsos, com meu nome. Não há como escapar; o ladrão tem vielas para fugir com a galinha, mas da internet você não se livra.

Por isso, resolvi escrever um artigo apócrifo de mim mesmo. Se puserem na web, eu direi que não é meu. Vamos a isso.

A mulher precisa do homem impalpável, impossível. Gosto do olhar de onça, parado, quando queremos seduzi-las, mesmo sinceramente, pois elas sabem que a sinceridade é volúvel. Um sorriso de descrédito baila nas lindas bocas quando lhes fazemos galanteios, mas acreditam assim mesmo, porque querem ser amadas, muito mais que 'desejadas'. O amor para elas é um lugar onde se sentem seguras. E todas querem casar.

O termômetro das mulheres é: "estou sendo amada ou não? Será que ele me ama ainda?" A mulher não acredita em nosso amor. Quando tem certeza dele, para de nos amar. Nelson Rodrigues me contou: "Uma mulher me disse: quando um homem me diz 'eu te amo', perco o interesse na hora".
Elas estão sempre um pouco fora da vida social, mesmo quando estão dentro. Podem ser executivas brilhantes , mas seu corpo lateja sob o terninho.

As mulheres têm uma queda pelo canalha. O canalha é mais amado que o bonzinho. Ela sofre com o canalha, mas isso a justifica e engrandece, pois ela tem uma missão amorosa: convencer o canalha que ele a ama, mas não sabe... Mulher não tem critério; pode amar a vida toda um vagabundo que não merece ou deixar de amar instantaneamente um sujeito devoto. Se você for realmente mau, saiba que isso é bom e lhe faz respeitado de forma oblíqua: "Meu marido é um canalha!" - geme a mulher para as amigas, com um tênue sorriso de orgulho. E as amigas suspiram, invejando-a pelo adorável canalha que a maltrata. Como são amados os malandros... O fiel não tem graça. É tedioso, está ali para sempre, enjoado, sem drama. O canalha é aventureiro, malvado, encarna um sonho intangível para a mulher. Todo galã é impalpável.

Por outro lado, é preciso muita atenção para saber se a mulher te ama mesmo. Outra vez, o Nelson, que fez um teste infalível: "Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada, não há amor possível."

Nada mais terrível que a mulher que cessa de te amar. Você vira uma espécie de 'mulher abandonada'. O homem abandonado se efeminiza em lágrimas vãs. A mulher instila medo no coração do homem. Mesmo com as carinhosas, há perigo no ar. A carinhosa total entedia os machos, que ficam claustrofóbicos. O homem só ama profundamente no ciúme. Só o corno conhece o verdadeiro amor. Mas, curiosamente, a mulher nunca é corna, mesmo abandonada, humilhada. A mulher enganada ganha ares de heroína, quase uma santidade. É uma vingadora, até suicida. Mas nunca corna. O homem corno é um palhaço. Ninguém tem pena do corno. O homem só vira homem quando é corneado. A mulher não vira nada nunca. Como no homossexualismo: a lésbica não é veado. O homem é pornográfico; a mulher é amorosa. A pornografia é só para homens.

O maior mistério do mundo é a diferença entre os sexos. Por mais que queiramos, nunca chegaremos lá: o mistério de ter ou não ter pau, o mistério gozoso de dar, o mistério de ver o mundo de dentro de um útero. Há alguns exploradores, os travestis, escafandros que tentam mergulhar fundo neste mar e que voltam de mãos vazias. Nunca saberemos quem é o outro, aquele ser com seios, vagina, aquele ser ali, maternal, bom, terrível quando contrariado; e elas nunca saberão o que é um falo pendurado, um bigodão, um jogo de porrinha, um puteiro visitado.
Se o amor como resposta deixa a desejar, é porque ele aspira secretamente a matar o outro. O amor aspira a abolir a diferença. Se o amor se contentasse com pouco, ele não deixaria tanto a desejar. O amor é uma patética falta de recursos.

Daí, o ódio que os primitivos cultivam contra as mulheres; daí, os boçais assassinos do Islã apedrejando-as até a morte.

As mulheres são sempre várias. Isso não as faz traidoras; nós é que nos achamos "unos". Só os autoconfiantes são traídos. Esta é uma das razões do sucesso das putas. O que buscamos nelas? Os homens pagam para que elas não existam. O amor exige coragem. E o homem é mais covarde.

Elas ventam, chovem, sangram, elas têm inverno, verão, "t.p.m."s, raiam com a manhã ou brilham à noite, elas derrubam homens com terremotos, elas nos fazem apaixonados porque nelas buscamos um sentido que não chega jamais. Elas querem ser decifradas por nós, mas nunca acertamos no alvo, pois não há alvo, nem mosca.

A mulher quer ser possuída em sua abstração, em sua geografia mutante, a mulher quer ser descoberta pelo homem para se conhecer. Querem descobrir a beleza que cabe a nós revelar-lhes. As mulheres não sabem o que querem; o homem acha que sabe. O masculino é o certo; o feminino é insolúvel. A mulher é metafísica; homem é engenharia. A mulher é muito mais exilada das certezas da vida que o homem. Ela é mais profunda que nós. A mulher deseja o impossível - esta é sua grande beleza. Ela vive buscando atingir a plenitude, mesmo que essa "plenitude" seja um "living" bem decorado, um lindo abajur ou o perfeito funcionamento do lar.

Vejam o resultado. Muitas mulheres adoram os artigos que 'não' escrevi. Mas, aposto que este será chamado de machismo  politicamente incorreto. Cartas para a redação.

Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,um-artigo-apocrifo-por-mim-mesmo-,919503,0.htm



 

domingo, 19 de agosto de 2012

A internet como vício

Por Zuenir Ventura

Na sua cruzada pela difusão da leitura no país, Ziraldo provocou polêmica aqui na Bienal do Livro de SP, ao afirmar que os pais hoje não percebem que seus filhos estão ficando “idiotas”. E que a culpa é da internet.


Muita gente concordou com a afirmação, que a outros pareceu exagerada, até que o professor de física Pierluigi Piazzi disse depois mais ou menos o mesmo, com mais ênfase. Para ele, a internet está criando jovens “imbecilizados”, “deficientes mentais”, uma “geração talidomida”, a ponto de o Hospital das Clínicas ter criado, segundo ele, um departamento de “desintoxicação” desses viciados.

Citou ainda a experiência feita numa universidade dos EUA, quando, impedidos de acesso a computador e celular por três dias, usuários compulsivos desenvolveram a síndrome de abstinência, como a de qualquer dependente de drogas. “Tiveram vômitos, dor de cabeça, febre e convulsão.”

Fiquei impressionado, porque um amigo acabara de me informar que, por insistência da família, estava se tratando com um psicanalista para se libertar do celular (e, claro, da internet). Tomara consciência de que estava doente, inclusive porque era mais fácil conversar com ele por telefone do que pessoalmente, mesmo em sua presença.

Apesar de não correr o risco, porque nem celular tenho, acho que atribuir à tecnologia toda a culpa pelo pouco caso com o livro me parece injusto.

A responsabilidade tem que ser repartida também com a família e a escola. Num lar onde os pais não saem da frente do computador ou da televisão e não gostam de ler, os filhos dificilmente vão gostar, porque tendem à imitação.

O contrário funciona como estímulo: o gosto pela leitura começa em casa e pode se desenvolver na escola, desde que não seja imposta como obrigação.

Pra não dizer que não falei de Alice, minha neta prova que é possível a convivência. Ela lida tão bem com as novas tecnologias da comunicação que me dá aulas de ipad. Ao mesmo tempo, adora ler, isto é, vive pedindo que leiam para ela uma história, inclusive as do Ziraldo.

Aliás, uma vez em Porto Alegre, diante de uma plateia de professoras, eu lamentava que os jovens tivessem perdido o gosto pela leitura, quando uma delas me corrigiu: “Só se for o adolescente, porque as crianças estão lendo.”

E contou o que ocorrera na véspera, quando cerca de 2 mil leitores mirins tinham se aglomerado para ver e ouvir o autor infantil preferido deles. Seu nome: Ziraldo. Em suma, é preciso não generalizar os casos patológicos.

Fonte: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2012/08/18/a-internet-como-vicio-por-zuenir-ventura-460927.asp







quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Juízes perguntam

Por Merval Pereira


Uma novidade importante está sendo registrada neste julgamento do mensalão: juízes fazendo perguntas diretamente a advogados, o que não é comum no Brasil. O relator, ministro Joaquim Barbosa, fez perguntas ontem a Marthius Sávio Cavalcante Lobato, defensor do ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato, e o ministro Dias Toffoli havia feito o mesmo anteontem a Maurício de Oliveira Campos Júnior, que defende o dirigente do Banco Rural Vinícius Samarane.

Isso não é comum, embora seja permitido pelo regimento interno do STF, mas também este não é um caso típico.

Diego Werneck Arguelhes, professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas/Rio e especialista no sistema judiciário americano, considera que neste caso há a certeza de que os ministros já leram tudo, estudaram tudo várias vezes pela dimensão do caso, pois estava tudo digitalizado, eles tiveram acesso a todas as peças muito tempo antes, e há muita expectativa.

Por isso, as perguntas podem ser importantes para esclarecer pontos específicos dos autos. Não é comum, mas é uma prática muito boa, diz ele.

Na Suprema Corte dos Estados Unidos, ao contrário, essa é a prática. O advogado até prepara a sustentação oral, mas mal consegue falar, pois é logo crivado de perguntas.

O que é interessante, diz Arguelhes, é que na Suprema Corte há essa discussão sobre questões de Direito, vão perguntando qual é a implicação do seu argumento, qual precedente, mas no caso do mensalão não se está fazendo debate de teses jurídicas, eles queriam esclarecer questões de fato, o que é fundamental em processo tão complexo, com tantos fatores, tantas peças para encaixar.

É muito bom que o ministro interrogue para esclarecer dúvidas, diz ele. Joaquim Barbosa queria saber exatamente do que Pizzolato tinha ou não participado, quem autorizava os repasses. Ao que tudo indica, as respostas do advogado foram benéficas para o réu, mas é difícil saber até onde Joaquim Barbosa quis chegar, porque não sabemos tudo o que está nos autos.

O relator do caso insistiu muito na participação de Pizzolato na liberação de dinheiro para a agência de Marcos Valério, já que a acusação diz que parte do dinheiro público veio de acordo do Visanet com o Banco do Brasil.

Ao mesmo tempo, o comentário do advogado Cavalcante Lobato de que Pizzolato não sabia que, em pacote que Valério lhe dera, havia R$ 326.660 foi simplesmente ridículo.

Diego Arguelhes comenta que essa talvez seja uma falha do nosso sistema. “Os ministros poderiam ser mais proativos quando é dito algo que contraria o bom-senso.” Mas ele admite que esse talvez seja um tipo de pergunta que pode sinalizar um pouco mais de agressividade por parte dos juízes, justamente por ser uma prática inédita.

“Fica um pouco interrogador, mas a gente caminha para um momento em que essa pergunta poderia ser feita, certamente seria feita nos Estados Unidos”, diz Arguelhes.

Aqui, a falta dessa tradição de os ministros interrogarem tem várias explicações, mas em primeiro lugar está o respeito à figura do advogado, a valorização do momento da sustentação oral como algo importante da tarefa do defensor, e interromper pode ser associado de algum modo a um menosprezo.

Arguelhes lembra que temos a tradição das grandes sustentações orais dos advogados brasileiros, com destaque para as de Rui Barbosa, que enchiam o Supremo no início do século.

Mas hoje, ele lembra, com a evolução tecnológica, a sustentação do advogado não é mais novidade para os juízes, pelo menos num caso como este.

Seria difícil dizer que de maneira geral todos os juízes já chegam com os casos estudados, pois isso não acontece normalmente, comenta Diego Arguelhes. Mas, nos casos importantes, especialmente no Supremo, isso é verdade.

Para ele, nos Estados Unidos há uma cultura mais adversarial no processo judicial. A própria relação entre as partes é diferente, há coisas que não acontecem no Brasil, ressalta. Lá um advogado pode atacar diretamente a sua testemunha, já no Brasil tudo é mediado pelo juiz. “Talvez a ideia de o juiz interpelar o advogado indique uma perda de neutralidade, o medo tradicional seja esse.”

O caso do mensalão mostra que esse processo não se dá necessariamente assim, a pergunta de Joaquim Barbosa, por exemplo, pode ter sido importante para Pizzolato.


Fonte: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2012/08/10/juizes-perguntam-por-merval-pereira-459619.asp




quarta-feira, 25 de julho de 2012

Cortar Palavras

Por Zuenir Ventura - "O Globo - Caderno Opinião" - 21/07/2012

Sempre quis saber se a máxima “Escrever é cortar palavras” era de Carlos Drummond de Andrade ou de Graciliano Ramos. Pela economia de linguagem dos dois, tanto podia ser do poeta quanto do romancista. É a melhor definição do nosso ofício de jornalistas e escritores, que passamos a vida tendo que suprimir ou diminuir texto mais do que acrescentar, o que dá muito mais trabalho. Como dizia o Padre Antonio Vieira, “peço desculpas porque não tive tempo de ser breve”. Falando disso com Marisa Lajolo e Arthur Dapieve, ela, escritora e professora de Literatura, tinha uma pista. Dias depois, me mandou a cópia de uma crônica do saudoso Armando Nogueira justamente intitulada “Escrever é cortar palavras”. Ele conta que passou “alguns anos” acreditando que o autor fosse Drummond. Mas, melhor repórter do que eu — que fiz uma longa entrevista com o poeta sem tocar no assunto —, Armando matou sua curiosidade indo direto à fonte. O poeta conhecia a frase, informou, “mas negou que fosse dele”. “Desapontado”, continuou sua pesquisa. Otto Lara Resende desconfiava que pertencia a um escritor mexicano, mas de cujo nome não se lembrava.


A busca levou o cronista a John Ruskin, “notável escritor e crítico inglês do século passado” (XIX), autor de um conto antológico sobre um feirante que oferece num quadro-negro o seu produto: “Hoje vendo peixe fresco.” Ao perguntar ao amigo o que achava da propaganda, recebeu a resposta de que a palavra “hoje” era dispensável, por óbvia. O vendedor cortou o advérbio de tempo e perguntou: que tal agora? “Se o amigo permite, tornou o visitante, gostaria de saber se existe aqui na feira alguém dando peixe de graça.” Era claro que não. E o anúncio, depois de perder o advérbio, perdeu o verbo, ficando reduzido simplesmente a um substantivo e a um adjetivo: “Peixe fresco.” Como numa feira presume-se que todo peixe seja fresco, bastaria a palavra “Peixe”. Mas, pensando bem, seria redundante chamar pelo nome o que todo mundo estava cansado de conhecer. Ruskin concluiu então: “O substantivo foi apagado. O anúncio sumiu. O quadro-negro também. O feirante vendeu tudo.”

A moral da história pode parecer uma sutil ameaça a escritores, jornalistas e publicitários. Será que, se a máxima for aplicada com excessivo rigor, acabaremos sendo dispensáveis?

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Por falar em mensagem, pelo menos uma autoridade se indignou contra a cena denunciada pelo colunista Ilimar Franco: soldados do 1, Batalhão da Polícia do Exército do Rio marchando e declamando em coro: “Bate, espanca, quebra os ossos até morrer. Arranca a cabeça e joga no mar.” O ministro da Defesa, Celso Amorim, mandou abrir sindicância contra o que classificou de “absolutamente inaceitável”. De fato, trata-se de autêntica apologia da barbárie.



segunda-feira, 9 de julho de 2012

O jornal de papel

Por Míriam Leitão

http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2012/07/08/jornal-de-papel-454371.asp

O jornal vai morrer. É a ameaça mais constante dos especialistas. E essa nem é uma profecia nova. Há anos a frase é repetida. Jornais desaparecem em vários países, tiragens diminuem, redações emagrecem. O tempo que o leitor, em média, fica diante de um exemplar encurta. Experiências são feitas para atrair leitores na era da comunicação nervosa, rápida, multicolorida, performática. Mas o que é o jornal? Onde mora seu encanto?


O que é sedutor no jornal é ser ele mesmo e nenhum outro formato de comunicação de ideias, histórias, imagens e notícias. No tempo das muitas mídias, o que precisa ser entendido é que cada um tem um espaço, um jeito, uma personalidade. O pior erro que se pode cometer é um meio negar sua própria natureza e tentar ser outro dos muitos seres que povoam esse mundo, seres que agora se multiplicam.

É intenso o mundo da comunicação de hoje e não permite muitos erros. Trabalha-se num meio mutante e desafiador. Quando surge uma nova mídia, há sempre os que a apresentam como tendência irreversível, modeladora do futuro inevitável e fatal. Depois se descobre que nada é substituído e o novo se agrega ao mesmo conjunto de seres através dos quais nos comunicamos.

O livro vai morrer, dizem os mesmos especialistas que atestam o fim dos jornais. E o livro migra, muda e fica. Parati e para mim. Fica em papel ou em meio digital, como um dia foi pergaminho, papiro. Os livros têm o encantamento eterno que faz, ainda hoje, jovens disputarem concursos literários, pessoas de todas as idades circularem por festivais como a Flip — ou Clip, como diria Veríssimo — e as bienais. Livros forjam pessoas, personalidades e sensações; marcam momentos e etapas da vida.

A biblioteca da exposição “Humanidades” foi formada pela mesma pergunta feita a pessoas de áreas diferentes: que livros influenciaram sua formação? Há pessoas que diante dessa pergunta podem até ficar constrangidas. Há outras que souberam os marcos do caminho da sua própria construção.

Leitora compulsiva de jornais desde a infância, não saberia viver sem eles. Leitora obsessiva de livros, só fiquei sem eles uma única vez na minha vida e foi sob a mira de armas. Na prisão, fui proibida de ler. Fazia parte do tormento. No longo silêncio sem livros, sem jornais, eu lembrava trechos dos livros mais amados. “Diadorim, meu diadorim”. E me sentia liberta.

Migrante por todas as mídias, conheço a força e o jeito de cada uma. Jornal, rádio, televisão, revista, blogs, sites, twitter e tudo o que mais vier. Aqui, neste matutino carioca (O Globo), começou este ano um produto vespertino específico para tablets. E ele é diferente de todas as outras mídias e preenche um vazio que nem se sabia que existia. Isso é que é curioso. A tecnologia de comunicação inventa a estrada e logo surgem produtos novos de comunicação. E tudo que circula é o mesmo e é diferente. É notícia, imagem parada ou em movimento, ideias, reflexões, opiniões.

Sempre aparecem os que garantem que um meio está morrendo, porque o outro nasceu e, na verdade, eles todos convivem. E a mudança continua em ritmo veloz. Quem não se lembra do vaticínio sobre o rádio? Tudo fica e muda. Essa é a natureza da era da comunicação vertiginosa.

Quando criança, eu me sentava ao lado do meu pai assim que o jornal chegava e colhia os suplementos que caíam do seu primeiro olhar, e depois vasculhava as partes centrais já lidas por ele. Lembro desses momentos com ternura. Da leitura conjunta brotavam discussões acaloradas sobre nossas divergências de opinião. Assim cresci.

Sábado passado eu estava mergulhada na leitura dos jornais, quando Mariana, minha neta de seis anos, acomodou-se ao meu lado no sofá, imitando meu jeito de sentar e perguntou:

— E o meu?
— O seu o que?
— O meu jornal!

Dei para ela o Globinho, o Estadinho. Não achei a Folhinha.

A cara dela de satisfação era de derrubar as convicções sobre o fim iminente do jornal. Daniel, meu neto de dois anos, chegou exigindo o seu exemplar de uma forma, digamos, insistente. As páginas terminaram partidas.

Os jornais vão acabar, garantem os especialistas. E, por isso, dizem que é preciso fazer jornal parecer com as outras formas da comunicação mais rápida, eletrônica, digital. Assim, eles morrerão mais rapidamente. Jornal tem seu jeito. É imagem, palavra, informação, ideia, opinião, humor, debate, de uma forma só dele.

Todos os jornais passaram a ter sites onde as notícias se movem o dia inteiro e as imagens em movimento se misturam a fotos. E como todos os sites estão olhando todos os sites, eles vão mudando o dia inteiro. Um copiando o outro. Dias atrás, vi um em que uma notícia começava em português e terminava em espanhol; um ideal há muito sonhado no mundo ibero-americano: a fusão dos dois idiomas.

Nesse tempo tão mutante em que se tuíta para milhares, que retuitam para outros milhares o que foi postado nos blogs, o que está nos sites dos veículos onlines, que chance tem um jornal de papel que traz uma notícia estática, uma foto parada, um infográfico fixo?

Terá mais chance se continuar sendo jornal.



Concórdia e discórdia

Por Caetano Veloso - "O Globo - Segundo Caderno" - 08/07/2012

"A não concordância de número nos verbos e adjetivos relacionados também me faziam mal." Essa foi demais. A não concordância de número me "faziam" mal? Não tinha relido aquele artigo em que chamei o acento grave de agudo. Não vi é que um erro maior tinha passado. A frase - que abre o artigo de hoje - é um erro perfeito. Senilidade & masoquismo. Quem me chamou a atenção foi o professor André Valente, a quem devo tanto (ele levou Moreno, na adolescência, a gostar de português como matéria escolar, o que elevou o nível do diálogo com meu filho mais velho para um patamar acima do maravilhoso entendimento emocional-afetivo que ele e eu já tínhamos). Se eu fosse mais organizado, ia escrever aqui sempre sobre fatos da língua. A discórdia com os sociolinguistas terminaria em alguma concórdia (para confirmar o diagnóstico de Roberto Schwarz).


Uma piada deles sobre os que gostam de defender a norma culta saberem menos sobre ela do que eles - que supostamente a desprezam - servirá sempre como uma lição a mais (e mais exigente) a ser divulgada sobre o melhor uso das regras vigentes (Bagno fez isso com Dora Kramer num livro; poderia fazer mais com meu grave agudo e mais ainda com minha discordante demanda por concordância).

Tinha me prometido escrever hoje um texto coeso, elegendo um assunto único e desenvolvendo-o até sua conclusão pertinente. Tudo isso para intitulá-lo "À Francisco". Adoro os ensaítos de Francisco Bosco (destaco um que trata da opressão chinesa no Tibete, um que punha sob suspeição o texto de Zizek sobe o tema). Por um lado, eu não queria que, nos acenos que por vezes fazemos uns aos outros os ocupantes deste espaço no Segundo Caderno - os que fomos saudados pela ironia do Xexéo quando nossos nomes foram anunciados -, eu tivesse deixado parecer que só me interessei pelo único artigo de Francisco que, meio contra o gosto do autor, saiu fragmentário. Por outro, eu teria a oportunidade de pôr no título um acento grave indicando crase diante de um nome masculino. Claro que eu aproveitaria a ocasião para tirar onda com a cara de alguns possíveis leitores que viessem a pensar que aquele "à" era o jeito certo de grafar a preposição, explicando que não, nada disso, que ali era crase mesmo. E que só se usa crase antes de um nome masculino quando ela é forma abreviada de "à maneira de". Às vezes se escreve "à la Francisco", em francês, o que aumenta a confusão, já que em francês a preposição tem o acento grave. Em português, "à" significa o que em espanhol é "a la" e, em francês, "à la". Uma vez, no blog Obra em Progresso (que acompanhava a feitura do disco "Zii e Zie"), escrevi que, para que meus possíveis leitores tivessem alguma luz sobre como pode ser simples, claro e fácil o uso da crase, bastava entenderem "à" como o feminino de "ao". Vou ao Rio; vou à Bahia. Mas Possenti, o linguista, me deu a honra de postar um comment no nosso blog dizendo (a rigor, com razão) que eu não podia caracterizar como variação de gênero (masculino, feminino, como no título daquele maravilhoso filme de Godard) o que acontece com palavras formadas por uma preposição, já que preposições não conhecem flexão de gênero. Bem, "à" e "ao" são formadas da preposição "a" e do artigo definido, este, respectivamente, em suas formas feminina e masculina. Pareceu-me que, se eu fosse um professor de português, talvez não devesse mesmo dizer a meus alunos que "à" é o feminino de "ao", mas, como estudante dirigindo-se a colegas que tivessem dificuldade de decidir-se sobre pôr ou não o acento indicativo da crase, eu poderia ser informalmente útil. Meu amigo, sentado na carteira ao lado da minha, teria um novo ângulo de abordagem da questão: só escrever "à" nos casos em que, se se tratasse de um substantivo masculino, ele pudesse ou devesse escrever "ao". Penso em como minha amiga Heloisa Chaves deve estar me achando chato com esses erros e consertos.

Falando em ensaítos, gostei muito dos artigos de Elio Gaspari e Demétrio Magnoli (tão diferentes entre si) sobre as confusões do Mercosul no Paraguai. Meus amigos racialistas têm urticária só em ouvir pronunciar o nome de Magnoli (mas respeitam o de Gaspari, que defende cotas e o PROUNI). Bem, eu gosto do livro de Magnoli sobre a questão racial. Eu também sou brasileiro, moreno como vocês. E os de Gaspari sobre a ditadura, claro. Este tem estilo jornalístico, aquele, sociológico. Mesmo em curtos textos de jornal, Demétrio escreve como sociólogo. Gaspari, mesmo no livro, tem o tom vívido, perto da notícia e da manchete, que caracteriza o repórter. Os dois comentários sobre o caso do Paraguai mostram como artigos de jornal podem servir para amadurecer a vida política brasileira, com pinta de influir, cedo ou tarde, nas decisões que possam vir a ser tomadas pelos que chegam ao poder. Peço desculpas por não resumir aqui o que cada um dos textos dizia. Não intuí um planejamento do espaço que comportasse tais resumos. Nem (mais importante) me sinto capaz de fazê-lo agora com a clareza necessária. O leitor que não os leu no papel pode achá-los na internet. Suponho. Já achei artigos na internet apenas dando um google em termos relacionados ao assunto.

Em suma, se este artigo de hoje viesse com o título de "À Francisco", isso não significaria que ele era dedicado ao meu jovem colega, mas que tinha sido escrito à sua maneira - coisa que ficou mais longe do que nunca de acontecer.

sábado, 7 de julho de 2012

Laços de família

Por Zuenir Ventura - "O Globo - caderno Opinião" - 07/07/2012

Ainda estou em Paraty e hoje participo de uma mesa sobre o tema "Em família", com os escritores Dulce Maria Cardoso e João Anzanello Carrascoza, mediada por João Cezar de Castro Rocha. Como ultimamente tenho frequentado muito os anos 40, vou falar das relações familiares nessa época, que reúne dois acontecimentos importantes: o Estado Novo e a II Guerra Mundial. Se a década de 70 foi a dos "anos de chumbo", a de 60 os "anos rebeldes" e a de 50 os "anos dourados", a de 40 pode ser chamada de "anos ocultos". Não é um período muito estudado e, no entanto, é um laboratório para a observação do conservadorismo moral, que começa a ser abalado nas décadas seguintes, mas sem desaparecer inteiramente. Como diz Cacá Diegues, "são costumes que a gente pensa que acabaram, mas que ainda estão vivos pelas províncias, pelos subúrbios, pelas periferias". São tempos de recato e pudor, mas também de dissimulação e hipocrisia, em que o importante era parecer, mais do que ser.


O modelo de formação familiar era o patriarcal, com o casamento tido como união indissolúvel. Os papéis eram bem definidos, com o pai como provedor único e a mãe, dona de casa que só eventualmente contribuía para o sustento da família, costurando ou cozinhando para fora. Os preconceitos, estigmas e tabus, tanto sexuais quanto morais e sentimentais, comandavam rigorosamente a conduta dos membros de uma família. Os valores cultivados como virtudes - a fidelidade, a obediência, a virgindade (o mito do hímen, o "bem mais precioso de uma moça", como se dizia) - e os desvios: o incesto, a pedofilia, o adultério (Nelson Rodrigues dizia que "não existe família sem adúltera"), a separação, o desquite, o divórcio.

Antes da lei do divórcio*, em 1997, os desquitados podiam recorrer ao casamento no Uruguai, inclusive mediante procuração, pois lá o desquite brasileiro era aceito como divórcio. Isso atenuava o estigma dos unidos por consenso, os "amigados", o que na cultura popular atingia especialmente a mulher, isto é, a "amante", essa ameaça de destruição dos lares. As famílias repletas de zonas de sombra, de armários trancados: a tia que deu um mau passo, ficou mal falada e nunca mais namorou ninguém; o solteirão de hábitos estranhos que alega não ter se casado para cuidar da mãe; o filho que cada vez mais se parece com o tio, cunhado da mãe; o bebê que deveria sair louro e saiu da cor do único amigo negro da família.

O que mudou dos anos 40 para estes tempos pós-modernos de aparente dissolução dos costumes? Uma pesquisa recente apresenta uma curiosa revelação: a família brasileira é uma das instituições mais valorizadas. E não por ter ficado mais careta, mas, ao contrário, porque aumentou sua tolerância com temas como virgindade e homossexualismo. Com exceção do que se passa no Brasil profundo.
 
*Lei do Divórcio - 6515/1977

terça-feira, 12 de junho de 2012

Pequena nota sobre o direito a viver

Por Eros Roberto Grau

Inventei uma história para celebrar a Vida. Ana, filha de família muito rica, apaixona-se por um homem sem bens materiais, Antonio. Casa-se com separação de bens. Ana engravida de um anencéfalo e o casal decide tê-lo. Ana morre de parto, o filho sobrevive alguns minutos, herda a fortuna de Ana. Antonio herda todos os bens do filho que sobreviveu alguns minutos além do tempo de vida de Ana. Nenhuma palavra será suficiente para negar a existência jurídica do filho que só foi por alguns instantes além de Ana.


A história que inventei é válida no contexto do meu discurso jurídico. Não sou pároco, não tenho afirmação de espiritualidade a nestas linhas postular. Aqui anoto apenas o que me cabe como artesão da compreensão das leis. Palavras bem arranjadas não bastam para ocultar, em quantos fazem praça do aborto de anencéfalos, inexorável desprezo pela vida de quem poderia escapar com resquícios de existência e produzindo consequências jurídicas marcantes do ventre que o abrigou.

Matar ou deixar morrer o pequeno ser que foi parido não é diferente da interrupção da sua gestação.Mata-se durante a gestação, atualmente, com recursos tecnológicos aprimorados, bisturis eletrônicos dos quais os fetos procuram desesperadamente escapar no interior de úteros que os recusam.Mais “digna” seria a crueldade da sua execução imediatamente após o parto,mesmo porque deixaria de existir risco para as mães. Um breve homicídio e tudo acabado.

Vou contudo diretamente ao direito, nosso direito positivo. No Brasil o nascituro não apenas é protegido pela ordem jurídica, sua dignidade humana preexistindo ao fato do nascimento, mas é também titular de direitos adquiridos. Transcrevo a lei, artigo 2o do Código Civil:

A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

No intervalo entre a concepção e o nascimento dizia Pontes de Miranda “os direitos, que se constituíram, têm sujeito, apenas não se sabe qual seja”. Não há, pois, espaço para distinções, como assinalou o ministro aposentado do STF, José Néri da Silveira, em parecer sobre o tema:

Em nosso ordenamento jurídico, não se concebe distinção também entre seres humanos em desenvolvimento na fase intrauterina, ainda que se comprovem anomalias ou malformações do feto; todos enquanto se desenvolvem no útero materno são protegidos, em sua vida e dignidade humana, pela Constituição e leis.

Trata-se de seres humanos que podem receber doações [art. 542 do Código Civil], figurar em disposições testamentárias [art.1.799 do Código Civil] e mesmo ser adotados [art. 1.621 do Código Civil]. É inconcebível, como afirmou Teixeira de Freitas ainda no século XIX, um de nossos mais renomados civilistas, que haja ente com suscetibilidade de adquirir direitos sem que haja pessoa. E, digo eu mesmo agora, nele inspirado, que se a doação feita ao nascituro valerá desde que aceita pelo seu representante legal tal como afirma o artigo 542 do Código Civil – é forçoso concluir que os nascituros já existem e são pessoas, pois “o nada não se representa”.

Queiram ou não os que fazem praça do aborto de anencéfalos, o fato é que a frustração da sua existência fora do útero materno, por ato do homem, é inadmissível [mais do que inadmissível, criminosa] no quadro do direito positivo brasileiro. É certo que, salvo os casos em que há, comprovadamente, morte intrauterina, o feto é um ser vivo.

Tanto é assim que nenhum, entre a hierarquia dos juízes de nossa terra, nenhum deles em tese negaria aplicação do disposto no artigo 123 do Código Penal,1 que tipifica o crime de infanticídio, à mulher que matasse, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho anencéfalo, durante o parto ou logo após, sujeitando a a pena de detenção, de dois a seis anos. Note-se bem que ao texto do tipo penal acrescentei unicamente o vocábulo anencéfalo!

Ora, se o filho anencéfalo morto pela mãe sob a influência do estado puerperal é ser vivo, por que não o seria o feto anencéfalo que repito pode receber doações, figurar em disposições testamentárias e mesmo ser adotado?

Que lógica é esta que toma como ser, que considera ser alguém – e não res – o anencéfalo vítima de infanticídio, mas atribuiao feto que lhe corresponde o caráter de coisa ou algo assim?

De mais a mais, a certeza do diagnóstico médico da anencefalia não é absoluta, de modo que a prevenção do erro, mesmo culposo, não será sempre possível. O que dizer, então, do erro doloso?

A quantas não chegaria, então, em seu dinamismo – se admitido o aborto – o “moinho satânico” de que falava Karl Polanyi?2 A mim causa espanto a ideia de que se esteja a postular abortos, e com tanto de ênfase, sem interesse econômico determinado. O que me permite cogitar da eventualidade de, embora se aludindo à defesa de apregoados direitos da mulher, estar-se a pretender a migração, da prática do aborto, do universo da ilicitude penal, para o campo da exploração da atividade econômica. Em termos diretos e incisivos, para o mercado. Escrevi esta pequena nota para gritar, tão alto quanto possa, o direito de viver.

1“Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena – detenção de dois a seis anos.”

2A grande transformação: as origens da nossa época. Tradução portuguesa de Fanny Wrobel. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

Fonte: http://www.febnet.org.br/reformadoronline/pagina/?id=254





quarta-feira, 6 de junho de 2012

"Mad Men", quinta temporada

Por Patricia Kogut - "O Globo" - 06 de junho de 2012

A quinta temporada de “Mad men” está no ar na HBO e você não pode perder. A Sterling Cooper Draper Pryce continua refletindo a América multicultural em construção. Passada a Marcha pelos Direitos Civis, a secretária de Don Draper agora é uma moça negra; o passo seguinte na agência é a contratação de um jovem talento judeu, Ginsberg, com direito até a uma breve referência ao poeta. A citação soa irônica, já que o mundo da publicidade é praticamente uma oposição ao ideário beat. O garoto ganha o posto, explica Roger (John Slattery), “porque agora é moderno empregar judeus, todas as empresas estão fazendo isso”. Na cena seguinte à da sua aceitação na firma — e, consequentemente, no seio dessa América generosa —, o rapaz chega em casa e é recebido pelo pai, um imigrante do leste europeu com sotaque carregado, que o abençoa em hebraico. É essa nação margeada por estrangeiros que “Mad men” também continua retratando. Outra fronteira bem presente na temporada é aquela que separa a contracultura e a rebeldia do rock do jeitão mais careta dos engravatados da Madison Avenue. Ela é muito bem reproduzida num episódio em que Don Draper (Jon Hamm) tenta, sem sucesso, chegar ao camarim dos Rolling Stones em Nova York. No backstage, ele parece envelhecido e desconfortável em contraste com as fãs adolescentes que fumam baseados enquanto esperam seus ídolos.


E Betty Francis (January Jones) reaparece em cenas melancólicas. Com o feminismo ainda se instalando, ela é uma daquelas representantes daquele mundo em extinção das princesas da pré-revolução sexual. Até sua estampa de Grace Kelly se desmanchou. Betty engordou e se entrega sem reservas a potes de sorvete e a pacotes inteiros de batatas fritas. O subúrbio das esposas e da vida doméstica é mais uma fronteira que volta com força a ilustrar a série nessa temporada. A atriz ganhou peso na vida real por causa de uma gravidez, e o resultado no ar impressiona.

“Mad men” continua puxado por um enredo sem pressa nem grandes acontecimentos e monta o painel completo de uma época. Isso sem falar, claro, naquele desfile de figurinos deslumbrantes.

http://oglobo.globo.com/cultura/kogut/posts/2012/06/06/critica-mad-men-quinta-temporada-449154.asp


terça-feira, 29 de maio de 2012

Fatos e versões

Por Merval Pereira - "O Globo"- 29 de maio de 2012.

Não são apenas as versões do encontro do ex-presidente Lula com o ministro do Supremo Gilmar Mendes, no escritório do ex-ministro do Supremo e do governo Lula Nelson Jobim que estão desencontradas. O próprio encontro em si não poderia ter acontecido se vivêssemos em um país sério.


Se respeitassem a liturgia dos respectivos cargos, o advogado Jobim não poderia ter aceitado servir de intermediário de um encontro de Lula com Gilmar Mendes; o ministro do Supremo deveria ter recusado o encontro em tais circunstâncias e, sobretudo, o ex-presidente, se se desse ao respeito, não poderia nem pensar em pressionar um ministro do Supremo Tribunal Federal.

Pelos desmentidos desencontrados e por algumas coincidências do relato de Gilmar Mendes com fatos da vida real, está mais do que claro que houve o encontro e que o tema central foi mesmo o julgamento do mensalão, uma atitude que poderia render a Lula um processo de impeachment se ainda fosse Presidente da República, como bem lembrou outro ministro do Supremo, Celso de Mello.

Esta seria, por sinal, a segunda vez em que o mensalão levaria Lula à beira do impeachment, a primeira pelo próprio fato em si, que o levou a pedir desculpas ao povo brasileiro e dizer-se traído, numa admissão pública da gravidade do que ocorrera.

Agora, na tentativa desesperada de adiar o julgamento do Supremo.

O advogado Nelson Jobim não conseguiu sair-se bem da missão de desmentir o indesmentível.

Primeiro disse pessoalmente a Jorge Bastos Moreno que a visita acontecera por coincidência, pois Lula fora visitá-lo e lá por acaso estava Gilmar Mendes, que de vez em quando aparece no escritório para tocar um trabalho jurídico com Jobim.

Como Moreno de bobo não tem nada, registrou o desmentido como sendo uma confirmação, pois não é possível que, sabendo três dias antes que Lula lá estaria, não tivesse desmarcado qualquer outra reunião em seu escritório.

E mesmo que Gilmar Mendes apareça por lá sem avisar, caberia a Jobim evitar constrangimento aos dois.

A terceira versão de Jobim – antes dera outra à revista Veja, alegando que não ouvira tudo o que foi conversado – foi, afinal, de que realmente convidara Gilmar Mendes a se encontrar com o ex-presidente para uma conversa em seu escritório, por iniciativa de Lula, mas negando que a conversa tivesse girado sobre o mensalão, que teria entrado nela “de passagem” por seu intermédio.

O esforço de Jobim para proteger o ex-presidente Lula é tamanho que ele não se incomoda de se colocar em má situação.

Ora, se fosse mesmo verdadeira, essa versão colocaria Jobim não apenas como intermediário, mas também como participante ativo da pressão sobre um seu ex-colega de Supremo.

Ao levantar o assunto mensalão, Jobim estaria sendo no mínimo inconveniente, para não dizer temerário.

O próprio ex-presidente, aliás, na nota oficial do Instituto Lula em que se diz “indignado” e nega que tenha pressionado o ministro Gilmar Mendes, fala do encontro como tendo sido ocasional: “No dia 26 de abril, o ex-presidente Lula visitou o ex-ministro Nelson Jobim em seu escritório, onde também se encontrava o ministro Gilmar Mendes”.

Lula, como se vê, mantém a versão do encontro ocasional, quando Jobim já evoluíra para admitir que convidara Mendes para o encontro a pedido dele.

O ministro do Supremo Gilmar Mendes teria que ter uma imaginação prodigiosa para inventar tantos diálogos e situações, e bastam duas ou três dessas situações relatadas por ele para confirmar que tudo se passou como diz.

O ex-presidente Lula teria dito a Gilmar Mendes que pediria ao jurista Celso Antonio Bandeira de Mello para conversar com o presidente do Supremo, Ayres Britto, de quem é uma espécie de guru, responsável por sua indicação ao STF por Lula.

O presidente do STF, embora não acredite na intenção maliciosa de Lula, recordou que durante almoço no Palácio da Alvorada, a convite da presidente Dilma Rousseff, Lula perguntou-lhe sobre Bandeira de Mello, afirmando que “qualquer dia desses” os três tomariam um vinho juntos.

Lula ainda se referiu a José Dias Toffoli, afirmando que lhe dissera que ele “tem que participar do julgamento”.

Ex-advogado do PT, e tendo uma namorada que atuou em defesa de mensaleiros, inclusive o ex-ministro José Dirceu, há expectativa de que Tofolli se considere impedido de participar do julgamento do mensalão.

O que Lula teria dito a ele fora antecipado pelo prefeito de São Bernardo Luiz Marinho, um dos políticos mais próximos de Lula, que definiu recentemente em declaração pública sobre a possibilidade de Tofolli se sentir impedido: “Ele não tem esse direito”.

Recentemente, o ministro Dias Tofolli foi criticado ao visitar Lula no Hospital Sírio e Libanês em São Paulo, com quem conversou longamente. Vê-se agora que as críticas tinham razão de ser.

Por fim, o advogado Nelson Jobim, em uma das várias entrevistas que tem concedido desde que o encontro foi revelado por Veja, disse que se admirava muito de que só agora, passado um mês do encontro, o ministro Gilmar Mendes se revele revoltado com o teor da conversa.

Ou Jobim fez um comentário leviano, sem ter se inteirado das informações, ou está tentando apenas confundir o cenário. O fato foi revelado por Gilmar Mendes ao Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel; ao Advogado-Geral da União, Adams Silva e ao presidente do Supremo, Ayres Britto, antes de sair publicado na Veja.

Portanto, o ministro Gilmar Mendes apenas confirmou o que a reportagem de Veja soube por outros caminhos em Brasília. Como dizia o ex-ministro Golbery do Couto e Silva, segredo só guarda quem não tem. O melhor amigo sempre tem um melhor amigo, e todas as histórias acabam circulando.

O próprio Lula relatou seu encontro a várias pessoas. Por fim, a nota oficial do Instituto Lula tem pelo menos uma inverdade, quando afirma que Lula nunca tentou interferir nas decisões dos ministros do Supremo indicados por ele.

Houve pelo menos uma ocasião em que ele procurou pessoalmente um ministro, e foi rechaçado com elegância. Essa história é conhecida por vários ministros do STF.

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Só pode ter sido o fuso horário. Na coluna de domingo, escrevi que a Guerra do Ópio ocorreu “no século passado”. Uma frase também ficou fora do texto, complicando mais ainda seu entendimento.

Corrigi no mesmo dia no blog. A frase correta é a seguinte: “(...) esse processo de globalização tem sido bem recebido pela população chinesa, e começou nos anos 40 do século XIX, depois da Guerra do Ópio, e se agudizou depois da guerra com o Japão, quando ocorreu um grande debate no país sobre como entrar na modernidade.”

http://oglobo.globo.com/blogs/blogdomerval/posts/2012/05/29/fatos-versoes-447817.asp