quinta-feira, 29 de março de 2012

O alerta por trás do caso Demóstenes

"Opinião - O Globo" - 29/03/2012

Há outras evidências de infiltração do crime nas instituições

O senador Demóstenes Torres (DEM-GO) foi, durante muito tempo, uma espécie de homem acima de qualquer suspeita. Líder do partido na Casa, crítico vigoroso de desvios éticos, vocalizou a maioria da opinião pública quando, sem medir palavras, investiu contra o esquema peemedebista que controla o Senado sem preocupação com os manuais de boas condutas. Ou ao pedir a expulsão dos protagonistas do escândalo brasiliense do “mensalão do DEM”, à frente dele o ainda governador José Roberto Arruda.

Por isso, talvez não tenha havido, nas últimas legislaturas, surpresa maior que a descoberta do relacionamento nada ético entre o senador e o bicheiro Carlinhos Cachoeira, também de Goiás. O lado obscuro do destemido defensor de boas causas começou a ser iluminado a partir da Operação Monte Carlo, da Polícia Federal, deflagrada contra a indústria dos caça-níqueis, atividade ilegal em que o velho jogo do bicho firmou alianças com máfias internacionais e fez um up-grade em dinheiro, poder e violência.

À descoberta que Cachoeira dera ao senador, como presentes de casamento, um fogão e geladeira importados, o político respondeu, de maneira singela, que não poderia perguntar o preço dos regalos ao amigo. Mas as evidências de que o relacionamento entre Demóstenes e Carlinhos ultrapassava os limites de uma exótica amizade se acumularam. Não é comum um bicheiro dar a um político um tipo de telefone supostamente vacinado contra grampos para, por meio dele, ficarem em contato constante. O equipamento não funcionou ou usaram outros aparelhos para colocar os assuntos em dia, pois mais de 300 ligações entre os dois teriam sido gravadas pela PF. O conteúdo das conversas implicaria Demóstenes nos negócios escusos de Cachoeira.

A primeira reação dos senadores foi de pavloviano corporativismo: situação e oposição subiram à tribuna para prestar solidariedade ao ultrajado colega, um jogo conhecido em cujo final costumam-se engavetar as piores investidas contra o decoro. As denúncias, porém, foram se acumulando, Demóstenes perdeu a liderança do DEM e até mesmo a Procuradoria-Geral da República, desatenta ao caso, despertou para o escândalo, e, na terça, o procurador Roberto Gurgel, afinal, despachou pedido ao Supremo para ser aberto inquérito sobre o senador. Gurgel já estava há algum tempo com o processo, mas alegou esperar mais informações da operação policial.

A proximidade entre o bicheiro e Demóstenes realça a grave questão da infiltração do crime organizado nas instituições. E não se pode esquecer que, além do senador, dois deputados também faziam parte — ou fazem — deste círculo íntimo de Carlinhos: Carlos Alberto Leréia (PSDB) e Sandes Junior (PP), ambos de Goiás. O próprio bicheiro é conhecido por antigas relações subterrâneas com o mundo político, expostas no vídeo gravado em 2002 em que Waldomiro Diniz, então na Loterj, e futuro assessor de José Dirceu na Casa Civil no governo Lula, o achacava. Cabe lembrar que o escândalo causado pelo vídeo, revelado pela revista “Época” em 2004, abortou uma operação em curso no governo e Congresso para a indesejada legalização do jogo.

Se Cachoeira atua no Congresso, no Rio há milícias com representação nas Casas legislativas, e um juiz sob suspeição de proteger esses grupos. Demóstenes não pode ser visto como caso isolado.



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/opiniao/o-alerta-por-tras-do-caso-demostenes-4447029#ixzz1qY6L4rg7


 

Papa reforça missão da Igreja em Cuba

"Opinião - O Globo" - 29/03/2012

Visita amplia espaço para distensão e abertura políticas

O Papa Bento XVI iniciou sua viagem a Cuba com uma declaração até certo ponto surpreendente. Ainda no avião, rumo ao México, criticou sistemas políticos baseados no marxismo, afirmando que “a ideologia, como foi concebida, não corresponde mais à realidade”. Em solo cubano, moderou o discurso, mas deu seu recado ao exortar os cubanos a construir uma sociedade mais aberta, baseada na verdade, na justiça e na reconciliação. Em velada referência ao marxismo, declarou que a “busca da verdade implica o exercício da liberdade autêntica” e que “alguns interpretam mal essa busca, levando-os à irracionalidade e ao fanatismo, e a fechar-se sobre suas verdades, tentando impô-las aos outros”. Coube ao vice-presidente do Conselho de Ministros, Marino Murillo, responder a Bento XVI: ele destacou que as reformas econômicas não seriam acompanhadas de reformas políticas.Mas uma coisa é a retórica da ditadura e outra, a realidade. A viagem papal é útil ao governo de Havana, pois chama a atenção para um país que vive um drama, sem perspectivas e com a economia estagnada. Raúl permitiu que os cubanos comprem e vendam imóveis e veículos, e abram pequenos negócios para dar chance aos milhares de funcionários públicos que serão cortados, pois o Estado não tem mais como mantê-los. E não há dinheiro para investir em infraestrutura e manter as conquistas em termos de saúde e educação.

João Paulo II visitou Cuba em 1998. São momentos diversos, estilos diferentes, outros líderes — Raúl foi o anfitrião de Bento XVI, um Pontífice mais discreto que o inspirador e carismático antecessor. Mas o atual chefe do catolicismo cumpriu a missão de consolidar a Igreja como a maior organização social em Cuba depois do governo e como interlocutora capaz de ter papel crucial nas transformações que já se iniciaram.

Sua mensagem de fé e liberdade poderá servir de amortecedor no caso de uma transição traumática ou colapso do regime. O Papa reconheceu os avanços desde a visita de João Paulo II e exortou o governo a seguir em frente com as reformas. E pediu mais liberdade para a Igreja Católica, incluindo o direito de ensinar religião nas escolas e dirigir universidades.

Um dos assuntos mais delicados é o aspecto policial do regime, que persegue e prende quem faz oposição. Centenas de pessoas foram presas às vésperas da chegada e durante a estada do Pontífice, inclusive integrantes do grupo Damas de Branco. Críticos da ditadura castrista foram mantidos longe dos locais onde o Papa rezou missas públicas. Segundo o Vaticano, o Papa não esteve com dissidentes, mas recebeu suas mensagens.

A viagem do líder da Igreja renova a esperança de que a vida dos cubanos possa mudar para melhor. É um simbólico passo à frente, mas precisa ser seguida de atos concretos. Do lado cubano, de distensão, abertura e respeito aos direitos humanos, que levem ao fim da perseguição política e das prisões arbitrárias. Do lado da Igreja, de empenho em seu renovado papel numa futura transição política que se afigura complicada. É necessário também que os EUA reconheçam o início das reformas em Cuba e negociem o fim do anacrônico embargo econômico, que acaba de completar 50 anos.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Escreva bem, é simples

Por Erika de Souza Bueno - "Caderno Opinião" - 17/03/2012 - "O Globo"

Não é preciso ser professor de língua portuguesa para conhecê-la. Os gramáticos não são os únicos capazes de produzirem textos coerentes, concisos e adequados. Não, a língua portuguesa não é a mais difícil de ser entendida, pois não há dados seguros que comprovem isso. Não, português não é difícil de aprender. Acredite, você é capaz de produzir textos concisos, caprichados e perfeitamente entendíveis às pessoas que você deseja que tenham acesso a eles.


Para começar, defina seu assunto, ou seja, sobre o que você pretende falar ou discursar. Entenda que não é o título (ao concluir seu texto, não se esqueça dele), mas o assunto a ser desenvolvido, aquele que será seu objeto de análise, tal como uma matéria-prima que precisa ser moldada para ter os formatos de acordo com o estilo de cada um.

Uma das dicas para isso é inserir em seu cotidiano a leitura em suas formas verbais e não verbais, tendo um olhar atencioso a todas as formas de textos que o rodeiam, tais como propaganda, fôlder, charge, placa de trânsito, anúncio de emprego, discurso de algum político, enfim, atente-se a tudo o que é capaz de transmitir uma mensagem. Aproveite para se questionar sobre como esses exemplos conseguem fazer com que uma mensagem seja entendida por um determinado grupo de pessoas.

Bom, escolhido o assunto, defina, indispensavelmente, seu público-alvo, pois ninguém escreve bem se não souber para quem vai escrever.

Essa dica vale até mesmo se você desejar que seu texto seja lido por um grande número de pessoas. Nesse caso, utilize-se de uma linguagem simples e formal, ou seja, não utilize palavras que parecem existir apenas em dicionários e, muito menos, não utilize expressões grosseiras e gírias.

Observadas essas dicas, você pode, enfim, começar seu rascunho. Isso mesmo! Rascunho, pois um bom texto, na maioria das vezes, é o resultado de uma releitura realizada pelo próprio autor. Isso acontece porque, ao reler o que escrevemos, vamos identificando outras formas de passar a mesma informação. Nesse processo, aumentamos nossa garantia de que a mensagem será entendida pelos nossos receptores.

A partir de seu primeiro rascunho montado, faça uma releitura atenciosa, verificando se existe alguma palavra escrita incorretamente ou, ainda, se é necessário mudar a ordem em que as frases foram escritas. Aproveite essa releitura, também, para verificar se não existem formas mais claras de dizer alguma sentença, apostando na simplicidade das falas e na consequente clareza da mensagem.

Por falar em simplicidade, entenda-a como um dos caminhos para a concisão de seu texto. Por exemplo, em vez de começar um e-mail com “Venho por meio deste solicitar minha transferência de setor”, prefira, simplesmente, “Solicito minha transferência de setor”, não se esquecendo de começá-lo com os devidos cumprimentos.

Aproveite esse momento, ainda, para identificar possíveis pleonasmos, pois eles cansam o leitor, impedindo-o, muitas vezes, de completar a leitura. Exclua de seu texto, por exemplo, expressões como “elo de ligação”, “sair para fora”, “calçar os sapatos nos pés”, entre tantas outras.

Para finalizar, na releitura de seu próprio texto, tente atentar-se para regras simples da língua portuguesa, ou seja:

- Não separe sujeito e verbo e acentue todas as proparoxítonas.

- Analise os parênteses. Compreenda que tudo pode acontecer dentro deles, ou seja, outras vírgulas, pontos-finais e, até mesmo, exclamação e interrogação. Por isso, primeiramente, analise sua frase sem eles e, somente depois, volte seu olhar para analisar o que foi escrito, verificando se há mesmo a necessidade de inseri-los.

- Verifique se as palavras terminadas em ágio, égio, ógio e úgio estão devidamente acentuadas, bem como se a crase não foi inserida antes de palavras do gênero masculino ou antes de verbos no infinitivo.

- Se seu texto obedecer às regras da Nova Ortografia, exclua o trema e os acentos de paroxítonas “oi/ei”, bem como o circunflexo de formas verbais como “veem e creem”. Lembre-se que temos até o final de 2012 para nos adequarmos a ela.

- Se for utilizar os verbos “tem e vem” no plural, não se esqueça de acentuá-los.

- Atente-se para a escrita correta de cada palavra, verificando se não está faltando nenhuma letrinha.

- Em caso de ênclise, principalmente no Word (o Word insiste em eliminar alguns acentos indevidamente), verifique se os verbos (com exceção apenas de verbos terminados em “ir”) estão acentuados, como ocorre em “identificá-lo, rompê-lo, construí-lo, corrigi-lo”.

- Ainda falando em colocação pronominal, identifique se o pronome não está sendo atraído por palavrinhas como “não, jamais, quanto, quem, que…”. Por exemplo, em vez de escrever “não negaram-me a certidão”, escreva “não me negaram a certidão”.

- Evite o gerundismo, pois, assim como o pleonasmo, também pode desmotivar a leitura.

- Veja se você não repetiu alguns termos desnecessariamente, lembrando que a razão de os pronomes existirem é exatamente essa, ou seja, substituir palavras, retomando seu completo significado.

Além dessas regras que podem ser lembradas mais facilmente, vale mais uma dica muito importante: Peça que outra pessoa leia seu texto, pois nada como um olhar diferente para apontar algumas falhas que, mesmo após nossa releitura, não conseguimos identificar.

terça-feira, 13 de março de 2012

Sem imposições

Por Romário - "O Globo" - 12/03/2012

Minha relação com o futebol é conhecida no Brasil e no exterior. Desde meus tempos de jogador do Estrelinha, time fundado pelo meu pai na Vila da Penha, alimentei, como muitos meninos brasileiros, dois grandes sonhos: jogar uma Copa do Mundo pela nossa Seleção e ver o Brasil sediar um Mundial. O primeiro eu realizei em 94, ajudando o Brasil na conquista do tetra. O segundo será agora, se Deus quiser, em 2014.


Esse amor pelo futebol e o desejo de ver nosso país realizar uma Copa extraordinária contribuíram para que a fiscalização dos preparativos para o Mundial se tornasse uma das bandeiras do meu mandato de deputado federal. Não posso assistir calado aos mesmos abusos que já vimos tantas vezes no Brasil, inclusive na organização de eventos esportivos. Como tenho dito em diversas oportunidades, sei que o dinheiro despejado em obras superfaturadas, em elefantes brancos (o TCU já denunciou que quatro das 12 arenas se tornarão elefantes brancos), vai fazer falta na Saúde, na Educação, na Segurança, na acessibilidade etc. Não podemos aceitar.

Aliás, não posso aceitar calado que se gaste mais de R$ 1 bilhão para descaracterizar um estádio como o Maracanã. Essa dinheirama poderia, com certeza, ter sido gasta de outra forma, sem transformar em poeira o grande templo do nosso futebol.

Como vice-presidente da Comissão de Turismo e Desporto, visitei cada uma das cidades-sedes. Vi de perto o que estava sendo feito e, em muitas cidades, o que NÃO estava sendo feito, ou havia começado com muito atraso. Pude observar que, se muita coisa não mudar, e rápido, não teremos a mobilidade urbana, que era um dos principais legados previstos. Pelo que sei, menos de 30% das obras foram iniciados. O programa Mobilidade Urbana, do governo federal, por exemplo, ficou quase parado em 2011. Dos R$ 650 milhões previstos, só 0,02% foi executado! E os aeroportos? Só Rio, Campinas, Curitiba e Natal deram início às obras. É uma situação preocupante. Uma vergonha.

Também acho inaceitável que esses preparativos sejam feitos atropelando os direitos das pessoas, com desapropriações a toque de caixa. Será que os cariocas, os paulistas, os cearenses, querem como legado da Copa a favelização? Aposto que não.

Não podemos permitir que a Lei Geral da Copa passe por cima da soberania brasileira para atender aos interesses da Fifa, que só vai ficar aqui um mês. Temos, também, que estar vigilantes para garantir que a Copa das Confederações e a Copa do Mundo deixem um legado positivo para o nosso povo. Por isso, com o apoio da Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência, de que sou vice-presidente, lutei para garantir a acessibilidade nos estádios da Copa.

E fiquei contente por termos conseguido o compromisso da CBF de destinar 32 mil ingressos para pessoas com deficiência. Mas ainda falta muito para o ideal.

Não abro mão das bandeiras que orientam a minha atividade política. Podem me esculachar, se quiserem: nada me tira do meu foco. Nunca me preocupei em ser unanimidade, e sei que quando abro a boca para criticar a Fifa, a CBF ou a desonestidade de políticos e empresários, não sou apenas o Romário, e sim a voz de milhões de brasileiros.

Inútil fanfarronice

O Globo - 12/03/2012


O Brasil já sediou uma Copa do Mundo (em 1950), a seleção participou de todas as edições do Mundial e, de 1974 a 1998, sentou-se na cadeira de presidente da Fifa o brasileiro João Havelange. Por si só, estas credenciais são evidência de que o país não entrou como neófito no bilionário jogo pelo direito de promover a competição em 2014, o que lhe foi assegurado após uma mobilização que uniu o governo federal, dirigentes esportivos e a sociedade.

Junte-se a isso o fato de que, ao estimular o lançamento da candidatura brasileira, o poder público comprometeu-se com um caderno de encargos. Nele, a entidade sediada em Zurique apresenta explicitamente uma plataforma de exigências para os países interessados em promover o evento. Entre elas, além da reforma e/ou construção de estádios, inversões urbanísticas e mudanças na legislação.

São inaceitáveis, portanto, as demonstrações de bravata do governo brasileiro que têm marcado as relações com a Fifa. Primeiro, porque não contribuem para desfazer os gargalos que, de fato, existem na preparação do país para a Copa. Na verdade, esse tipo de postura parece querer disfarçar a leniência e a falta de empenho do poder público em relação aos compromissos assumidos. Segundo, porque não cabe contrabandear para a organização do evento fanfarronices que, além de dificultar os necessários entendimentos entre as partes envolvidas na preparação da competição, dão margem a um tipo de discussão mais apropriado às arquibancadas, em detrimento da civilidade no trato das dissonâncias. O destempero do secretário-geral da Fifa, Jêróme Valcke, e a consequente reação, também fora do protocolo, de Brasília às palavras do dirigente são inquestionáveis sinais desse descompasso que não atende ao que é relevante: o Brasil realizar uma Copa impecável.

Não se pode esconder que o país está atrasado em boa parte dos preparativos para a Copa.

É preocupante a insistência em negar essa realidade.

A renitência não ajuda a superar as demandas ainda por serem equacionadas. Há problemas sérios no projeto de mobilidade urbana, com fundamentais obras de intervenções urbanísticas sendo tocadas a passos lentos.

Resistências ditadas por interesses ideológicos impedem que o governo se empenhe na adoção de um projeto de efetiva modernização dos aeroportos, área vital para o sucesso de um evento internacional que atrai turistas/ torcedores de todo o mundo.

Há também suboferta de hotéis em diversas cidades (no Rio, por exemplo, um dos centros de turismo receptivo mais fortes do esquema da Copa), e são tímidas as iniciativas para melhorar a infraestrutura urbana (transportes, principalmente) — um dos prometidos legados da competição. Igualmente, inoportunas demonstrações de contestação no Congresso, com risíveis acusações de que a Lei Geral da Copa atentaria contra a "soberania nacional", contribuíram para o atraso na aprovação desse essencial projeto de mudança na legislação, para adequar legalmente o país ao perfil do evento.

Responder com inúteis bravatas a tais desafios apenas disfarça incompetências e procura esconder o que está na raiz de tudo: a Copa não é uma imposição da Fifa. Ao contrário, o Brasil pentacampeão do mundo correu atrás de uma legítima reivindicação, comprometendo- se a cumprir uma série de encargos de uma competição na qual estão envolvidos investimentos bilionários — e, por isso, deve ser tocada levando-se em conta interesses transnacionais, que não podem ficar a reboque de anacrônicas palavras de ordem.

Aos mestres, sem carinho

Por Zuenir Ventura - Caderno Opinião - "O Globo" - 10/03/2012

Por experiência própria, alguns dos países mais bem colocados no ranking de qualidade da educação — China, Coreia do Sul e Finlândia, principalmente — sabem que a isso se deve muito do seu desenvolvimento socioeconômico, sem falar no cultural.


O Brasil, ou parte dele, parece não saber. Bastou o Ministério da Educação divulgar o novo piso salarial dos professores da rede pública, a fortuna de R$ 1.451,00, para que governadores e prefeitos protestassem e alegassem falta de recursos para adotar uma lei que já fora confirmada pelo STF.

Onze deles se deslocaram até Brasília para pressionar pela mudança do parâmetro usado nos reajustes.

Choraram miséria, falaram em nome da austeridade, mas acharam natural gastar na viagem, com passagens e diárias, o que dava para pagar um mês do novo salário de dezenas de profissionais de ensino.

O caso mais gritante é o do Rio Grande Sul, que ostenta o piso mais baixo, 791,00 (o de Roraima é R$ 2.142,00), e onde foi preciso que a Justiça obrigasse o governo a cumprir suas obrigações legais.

Como observou o colunista Carlos Brickman, o governador petista Tarso Genro, “cuja função certamente não é tão útil quanto a de um professor, recebe quase R$ 30 mil mensais, fora casa, comida e muitas mordomias”.

E parece não concordar com a opinião de seu colega de partido, o ministro Aluizio Mercadante, de que “a valorização do professor começa pelo piso”.

Por essas e outras é que quase ninguém mais quer ser docente aqui, enquanto em outros lugares acontece o contrário. Numa recente entrevista a Leonardo Cazes, o finlandês especialista em educação Pasi Sahlberg informou que “o magistério é a carreira mais popular entre os jovens do seu país”.

Não por acaso, a Finlândia ocupa o terceiro lugar no ranking do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) e o Brasil o 53 entre 65 países.

Talvez não seja coincidência também que o Distrito Federal, com o piso mais elevado (R$ 2.315,00), apresente o melhor resultado, segundo os critérios do Pisa.

É bom saber que o Brasil acaba de ser declarado a sexta economia mundial. Mas é triste constatar que em qualidade de educação estamos lá embaixo, atrás de Trinidad e Tobago, Bulgária e México.

E que uma das razões é que dedicamos aos nossos mestres pouco carinho e remuneração insuficiente.

Ô Raça!

Por Joaquim Ferreira dos Santos - "Segundo Caderno" - "O Globo" - 12/03/2012

Um bom livro sobre o esporte de falar mal de jornalistas


Somos todos iguais nos pescoções noite adentro, aqui na Lapa como em Londres, e o melhor exemplo da tragicomédia do dia a dia das redações, das matérias furadas que a chefia insiste em pautar, é o livro “Os imperfeccionistas”, escrito pelo inglês Tom Rachman.


Ele é o lead do momento, é o sub-lead do verão e o romance de cabeceira dos jornalistas brasileiros, ou pelo menos daqueles que ainda preferem ler um livro a se cutucar ou se compartilhar no Facebook.

Numa das cenas, o chefe da redação se vê diante de um texto no qual o repórter, a fim de demonstrar estilo, diz ter um cidadão “literalmente” morrido de susto.

O velho homem de imprensa, no esforço de melhorar o jornal, a cada dia envia para a redação verbetes com proibições de novas palavras malditas, e, é claro, acrescenta “literalmente” à sua Bíblia de vetos.

“Se alguém morreu literalmente de susto o fato deveria ter ido para a primeira página.” Tom Rachman foi correspondente da Associated Press, editor do “International Herald Tribune” e, antes de cair fora da ralação sem fim atrás de fontes que sequer são murmurantes, prestou muita atenção nas figuras em torno dos aquários, da máquina de café e do mesão do copidesque. Tem o redator do obituário que vira editor do caderno de cultura, o free-lancer que inventa uma tropa francesa na Faixa de Gaza para vender a matéria e também uma redatora que, de sacanagem, para boicotar a chefia, substitui numa matéria sobre a guerra do Iraque o ditador Saddam Hussein por Satã Hussein.

As erratas, o ajoelhar sobre o milho que o jornalista faz em público, não param de manchar a credibilidade do jornal. A cada erro, identificado o repórter ou redator, é mais um profissional ao RH, mais uma vaga que não será preenchida, pois a crise grassa. Os leitores estão se debandando para sites de informação grátis ou com a tela piscando algum pedido de interatividade.

Tom Rachman passou por aqui. Deu plantão no réveillon, teve a cadeira roubada por algum colega da editoria ao lado, participou de coberturas furadas o suficiente para entender que, muitas vezes, “notícia é uma forma educada de dizer ‘capricho dos editores’”. O livro é quase um ajuste de contas, muito bem-humorado e inteligente, com o que deve ter sofrido no passado, pois os jornalistas desta redação por onde ele cruza suas histórias são quase sempre tomados por algum tipo de esquisitice. Um não quer nada com o batente e afugenta possíveis trabalhos folheando uma pasta de papéis, enquanto murmura “planejamento, planejamento”, mantra que julga espantar jornalistas.

Os cínicos estão por todas as editorias. Diante de um ex-namorado, que classifica de sórdido um jogo que ela propõe, a editora diz: “Por isso eu sou jornalista, não sei diferenciar o sórdido do interessante”. A propósito, a mesma jornalista justifica para o marido a ausência de notícias sobre a África com o argumento de que é preciso morrer 20 naquele continente para equivaler ao destaque da notícia de um morto europeu. Os jornalistas estão nus, e não é para fazer sexo, porque quando chegam à casa estão cansados demais para mais esta pauta. “Os imperfeccionistas” passa ao largo da lembrança de que em algum momento os bravos homens de imprensa foram heroicos em enfrentar perigos, baixos salários ou sistemas lentos de internet para informar o mundo do desmando dos poderosos.

Uma das definições de jornalista no livro: “São tão melindrosos quanto artistas de cabaré e tão teimosos quanto operários” — de um novo editor-chefe depois de convencer a redação a transformar aquele jornal político, de prestígio, mas cada vez com menos leitores, num tabloide inglês com umas gostosas nuas na primeira página.

Jornalistas são seres sensíveis, gostam quando são chamados de “o quarto poder”. Em “Os imperfeccionistas”, sem rancor, evitase elogio. O que interessa é o desmonte, com estilo, da pose de super-heróis. Todo dia, os colunistas pedem notícias, repórteres desconhecem os assuntos para os quais são pautados ou o editor abre um e-mail do chefe da oficina dizendo quanto custa um minuto por atraso no fechamento do jornal. Nem o Pullitzer nem o Esso. São obrigados a fazer matérias humanas sobre o homem comum e penam para tirar declarações incomuns deles.

Na redação de Tom Rachman, olhados de perto como poucas vezes na literatura, os jornalistas são uma raça risível. A editora namora o assessor do político criticado todo dia na manchete do jornal, a redatora se veste com as mesmas roupas de quando começou no cargo, 20 anos atrás, e passa a mão trêmula sobre os cabelos como se para expelir aranhas. Principalmente, estão todos, o tempo todo, querendo derrubar o colega ou enrolar uma fonte:

“Boa reportagem e bom comportamento não são compatíveis”, é como uma correspondente justifica os maus modos da turma.

“Os imperfeccionistas” é um livro delicioso sobre um dos esportes mais praticados no mundo inteiro, o de falar mal de jornalistas. Tom Rachman, como se cobrasse a conta do café ruim que tomou para suportar mais uma matéria sobre a explosão de um gasoduto na Nigéria, faz um perfil cruel do que viu nas redações. “Detonação mata pessoas de novo”, diz o título ridículo de uma matéria. Seu humor inglês não esqueceu sequer do leitor assíduo ameaçando cortar a assinatura. Sobrou para todos nós.

É uma obra de ficção, mas lá estão, com final melancólico para os jornais, a luta de hoje com o noticiário on-line e a tentativa das empresas de comunicação em monetizá-lo — um verbo que neste momento vai direto para a Bíblia das palavras vetadas em qualquer texto e que o livro de Tom Rachman, o fino da boa literatura moderna, evidentemente não emprega.