domingo, 14 de outubro de 2012

Rota do Pacífico traz negócios e devastação

Comunidades vivem expansão de oportunidades e do crime


Reportagem especial*


Há um ano foi inaugurada a megaestrada Interoceânica Sul, de 5.404 quilômetros de extensão, que conecta o Pacífico peruano com o Atlântico brasileiro. Com ela, nasceram centenas de oportunidades de riqueza e desenvolvimento, mas também grandes desafios ambientais e sociais. A estrada abriu uma vasta área da floresta mais cobiçada do planeta à economia mundial. Milhares de pessoas estão chegando para habitá-la e também muitos investidores de países tão distintos quanto China, Rússia, França, México e Chile, em busca de negócios.

VEJA TAMBÉM

O material completo com vídeos e fotos pode ser visto no site da Connectas (link abaixo)

http://www.connectas.org/amazonas/pt/index.html

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A tríplice fronteira Brasil, Peru e Bolívia, antes povoada por árvores centenárias, vida selvagem e cerca de 100 mil habitantes em suas áreas mais conservadas, agora se encheu de ruído: a música dos novos povoadores, o zumbido das motosserras, o movimento dos comércios de todo tipo e o estrondo de potentes motores arrancando o ouro enchem o cenário.

O Brasil, a sexta economia do mundo, precisava de uma saída para exportar seus produtos aos mercados asiáticos no Pacífico e foi o principal patrocinador da Interoceânica. A estrada era ainda uma maneira de integrar as cidades mais remotas de cada um desses três países: Puerto Maldonado, no Peru; Cobija, na Bolívia, e Rio Branco, no Brasil.

A organização não governamental de jornalismo Connectas percorreu cerca de 700 quilômetros da Interoceânica para ver quais foram as mudanças que a estrada trouxe para o meio ambiente e para a vida das pessoas.


Na tríplice fronteira, três forças disputam o desenvolvimento. De um lado estão os conservacionistas, que querem que a Amazônia continue intacta e sua biodiversidade somente sirva aos pesquisadores e ao sustento dos habitantes tradicionais. De outro estão os desenvolvimentistas, que acreditam ser possível extrair valiosos recursos, como a madeira e o ouro, de forma racional, com supervisão estatal. Também veem um potencial para expandir a fronteira agropecuária, derrubando e queimando floresta. E, na terceira ponta, estão os destruidores, que já estão tirando os minerais e cortando as árvores sem permissão das autoridades, em especial no Peru e na Bolívia.

A estrada conectou a selva com a modernidade e, assim, atraiu milhares de novos habitantes. Os pequenos e tranquilos povoados não conseguiram se preparar para a migração massiva. Nos últimos cinco anos, as pequenas populações duplicaram o número de habitantes, como o caso de Puerto Maldonado, que hoje se vê em apuros para acomodar 200 mil pessoas. Não tem os serviços necessários e, na aglomeração, o crime começa a crescer. A interconexão também abriu caminho para o narcotráfico e o tráfico de pessoas em uma espiral que, reconhecem as autoridades locais, ameaça a antes tranquila região.

A Interoceânica é como um cordel que entrelaça todas essas realidades. Enquanto isso, o intercâmbio comercial, sua principal razão de existir, começa a dar resultados. Até o momento, os produtos da região do Acre, como a soja, tinham de percorrer 26,3 mil quilômetros para chegar à China, com uma cara passagem obrigatória pelo Canal do Panamá. Com a nova estrada, essa distância foi reduzida a 17,5 mil quilômetros. No outro sentido, o Peru pode enviar seus produtos a menores custos para a África e a Europa, embarcando-os diretamente nos portos brasileiros no Atlântico. Espera-se que a Interoceânica também melhore o comércio entre Brasil e Peru, que hoje praticamente têm fronteiras abertas, e entre esses países com a Bolívia, que está a um passo da estrada. Também o Chile espera ver crescer suas oportunidades comerciais, uma vez que com a estrada terá acesso a um mercado de 200 milhões de consumidores brasileiros.

Apesar das expectativas, pode-se viajar quilômetros sem que se veja uma alma viva. Talvez ainda seja cedo para esperar um vibrante tráfego de caminhões carregados de produtos apenas um ano após a inauguração. Em média, a Interoceânica tem um fluxo de 160 veículos de carga por mês - a maior parte levando madeira para o Pacífico - e cerca de 640 veículos de passageiros, segundo disseram funcionários do pedágio no quilômetro 73, no pampa peruano.

No posto da alfândega peruana, o funcionário de turno foi ainda mais pessimista com as cifras: disse que, nos últimos três meses, não passaram mais de 300 caminhões em direção ao Peru com mercadorias variadas, como tubulação e maquinaria, além de ferramentas para os garimpeiros do pampa, muitos dos quais exploram ouro sem permissão. Segundo ele, o que mais se transporta para o Brasil é cimento e alguns poucos produtos agrícolas.

A Bolívia, em compensação, vem tirando vantagem econômica da estrada. Uma vez por semana uma caravana de nove carros-tanque parte carregada de gasolina da capital boliviana, La Paz, atravessa o Peru por Juliaca, pega toda a Interoceânica, passa pelo Brasil para logo retornar à Bolívia e fornecer combustível à cidade de Cobija. A enorme volta se justifica pelas péssimas condições das estradas entre os Andes e a selva na Bolívia. Mas, como a gasolina é mais barata na Bolívia do que no Brasil, militares têm de proteger o descarregamento em Cobija, para evitar que o combustível seja contrabandeado de volta para o Brasil.

São três as razões que explicam por que está demorando para decolar a sonhada bonança comercial que se acredita trará a estrada entre os três países. A primeira é que não há acordos para que o cruzamento de fronteira seja mais organizado. Os peruanos reclamam de controles excessivos. Carlos Miguel Rios, administrador da transportadora Civa, uma das que mais transitam na região, conta que, para cruzar a fronteira, tem de apresentar certificado de febre amarela, fazer imigração na fronteira e logo ter outro controle em Rio Branco, além dos registros da alfândega. "O trâmite é muito enrolado. Às vezes, argumentam razões fitossanitárias e a gente não pode passar com a mercadoria. Aqui, o único beneficiado é o narcotráfico, que agora ficou com a estrada expressa", disse o transportador.

A segunda é que, na teoria, fica barato levar a carga do Brasil aos portos peruanos, mas como o veículo que leva a carga costuma retornar vazio, pois este país exporta bem menos, o frete fica caro. O saldo comercial é negativo para o Peru. Em 2011, as empresas brasileiras venderam US$ 2.45 bilhões ao país, enquanto o Peru exportou US$ 1.27 bilhão. Por último, não é fácil para os motoristas guiar os gigantescos caminhões brasileiros pelas estreitas estradas andinas peruanas no trecho que vai para Juliaca, no sul do país, onde algumas curvas são tão estreitas que até os ônibus de passageiros têm dificuldade em passar.

* Reporagem especial: A reportagem foi realizada pela Connectas, organização jornalística sem fins lucrativos que privilegia a aliança com profissionais e meios de comunicação e promove a produção, o intercâmbio, a capacitação e a difusão de informação sobre temas para o desenvolvimento das Américas.

Contatos: via Twitter (@ConnectasOrg) ou pela página oficial no Facebook.

Fonte: http://economia.estadao.com.br/noticias/economia+brasil,rota-do-pacifico-traz-negocios-e-devastacao,130613,0.htm
















quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Uma etapa de mudança

Por Míriam Leitão - "O Globo" - 11/10/2012

Ele é negro. Acima de qualquer dúvida razoável, como dizem os juízes. Ele é negro e não contemporiza para facilitar sua aceitação. Joaquim Benedito Barbosa foi eleito ontem presidente do Supremo Tribunal Federal. Elogiou-se a rotina de eleição pelos pares e a alternância no cargo. Ainda melhor será o momento em que o fato de um negro estar lá nem notícia será, de tão rotineiro.


É assim que o país avança: quebrando paradigmas. O ministro Joaquim vai errar e acertar nos próximos dois anos, como nos últimos nove. Seus antecessores também erraram e acertaram. Não é herói — ele até se define como anti-herói — mas virou símbolo de um avanço extraordinariamente importante para o Brasil. O espaço maior que vem sendo ocupado pelos negros em instâncias do poder, até hoje majoritariamente brancas, é uma vitória que pertence ao país como um todo. Multiétnico e miscigenado, o Brasil ainda assim criou distâncias sociais e as manteve com a mais eficiente das estratégias: negar a existência da discriminação.

Joaquim votou no PT nas últimas três eleições, como revelou à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, e hoje é relator do processo que está condenando lideranças emblemáticas do partido. Foi capaz de separar de forma cirúrgica sua convicção técnica de juiz de quaisquer outras considerações que poderiam interferir em sua decisão.

O ministro tem uma história de vida de superação. Foi pobre, construiu sua ascensão pela educação, se globalizou indo para algumas das melhores universidades da Europa e dos Estados Unidos. Tem currículo invejável e competência inequívoca.

Debruçou-se, entre outros temas, sobre uma política pública que no Brasil ainda produz muita controvérsia: a ação afirmativa. Poderia fugir do assunto por temer ser instalado num gueto teórico. Poderia negar, com sua história de vida de superação, que este seja o melhor caminho para a construção de um país com uma elite também multiétnica. Mas estudou ação afirmativa, escreveu um livro técnico defendendo a política e não ficou preso ao tema. Quando a ação das cotas chegou ao Supremo Tribunal Federal, seu livro foi citado, por exemplo, no voto do ministro decano Celso de Mello. Ao fim, as cotas foram aprovadas por unanimidade, porque o voto do ministro relator Ricardo Lewandowski foi seguido por todos.

Não há uma contradição entre o caminho que o levou ao topo e as ações afirmativas que tornarão o Brasil, no futuro, um país em que outros vençam as barreiras que ele venceu. O currículo dele foi construído com muito esforço, mas nenhum presidente antes do Lula viu méritos em outros juízes negros. A invisibilidade do discriminado é uma arma antiga para manter as distâncias sociais. Se o ex-presidente Lula tivesse ficado prisioneiro da mesma armadilha de ver os méritos apenas do grupo dominante, o Supremo, talvez, fosse ainda hoje um monopólio dos brancos. Joaquim, como lembrou Celso de Mello, é o 50º presidente da Corte desde o Império, o 44º da República. E será o primeiro negro a se sentar na cadeira de presidente.

Muitos dizem que o importante não é que ele é negro é que tem méritos. Sem dúvida. Mas por que houve uma tão longa fila de meritórios apenas brancos? Porque não houve igualdade de oportunidades.

Há dez anos um blog do jornal Washington Post pediu a jornalistas de vários países que escrevessem quais eram as forças emergentes em cada país que teriam mais poder em 20 anos. Escrevi que no Brasil essas forças emergentes eram as mulheres e os negros. Hoje, o Brasil é presidido por uma mulher e, em breve, o Judiciário, por um negro. O Brasil muda para melhor.

Fonte: http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2012/10/11/uma-etapa-da-mudanca-469721.asp




segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O mais grave dos riscos

Por Miriam Leitão - "O Globo" - 30/09/2012

O IBGE revelou uma notícia assustadora, mas não houve reação à altura. O Brasil tem um milhão quatrocentos e quinze mil crianças de 7 a 14 anos oficialmente analfabetas pelo registro da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (Pnad). E de 2009 a 2011 caiu — sim, é isso, caiu — o percentual de jovens de 15 a 17 anos na escola. Será que é assim que queremos vencer?


A vastidão da tragédia educacional brasileira não caberia nesta coluna, e arruinaria — querida leitora, caro leitor — este seu domingo. Por isso vamos pensar juntos apenas em alguns números. Fomos informados dias atrás pelo IBGE que em 2009 o Brasil tinha 85,2% de jovens de 15 a 17 anos na escola. O que equivale a dizer que 14,8% não estavam, e isso já era um absurdo suficiente. Mas em 2011, a Pnad descobriu que o número tinha piorado e agora só há 83,7%. Aumentou para 16,3% o total de jovens nessa faixa crítica que estão fora da escola.

Em qualquer país do mundo, que saiba a natureza do desafio presente, esses números seriam motivo para se fazer um escândalo, iniciar uma investigação, chamar as autoridades à responsabilidade. O ministro se desculparia, os educadores seriam entrevistados para saber como resolver o problema, os contribuintes exigiriam mais respeito com seus impostos, os pais se mobilizariam. Mas a notícia foi dada numa sopa de outros indicadores e sumiu por lá. Em alguns jornais foi destaque, em outros, nem isso.

Como assim que em 2012 o país fica sabendo que tem menos — e não mais — jovens onde eles deveriam estar? E mesmo assim não se assusta, não reage? Difícil saber o que é pior: se a notícia em si ou a falta de reação diante da notícia.

Os demógrafos já nos informaram que estão nascendo menos brasileiros, e que, por isso, a população vai parar de crescer. Os empresários estão dizendo que há um apagão de mão de obra, falta trabalhador qualificado. Nem que seja por uma mera questão econômica, de formação de trabalhadores, o país deveria exigir explicação das autoridades. Afinal, estamos jogando fora cérebros que serão necessários à economia.

Mas a educação, evidentemente, não é só para formação de trabalhadores, como se fossem peças de uma máquina. É a única estrada que leva as pessoas à realização do seu potencial, a única forma de realmente incluir o cidadão, a melhor maneira de fortalecer a democracia.

A taxa de analfabetismo no Brasil é considerada a partir de 15 anos. Com esse recorte etário, a taxa foi de 8,6% em 2011. Uma melhora em relação a 2009, quando era de 9,7%. Com mais de 15 anos temos 12,9 milhões de analfabetos.

Mas se formos considerar quem não está na conta — os de 7 a 14 anos — existem mais 1,4 milhão de analfabetos. O problema desse número é que ele derrota a ideia de que o analfabetismo é um problema herdado pelos erros passados do Brasil. De fato, ele é maior quanto mais alta for a idade. Mas esses dados mostram que o país está repetindo agora o mesmo desatino. Há analfabetos jovens, hoje. Meio milhão deles estão na área rural. Aliás a taxa de analfabetismo rural brasileiro é de 21%.

Eu queria não estragar o domingo de você que me lê. Então vamos concluir assim: ainda há tempo. Se o Brasil se apressar, pode correr atrás dos ainda analfabetos. Pode tentar trazer de volta os jovens que desistiram da escola. Alguns mais céticos dirão que não há mais tempo e o cérebro não educado na infância jamais terá de volta a habilidade necessária. São tantos os casos de superação. É quase tarde demais, mas ainda há tempo. Se o Brasil não se apressar esses jovens continuarão em seu desamparo.

Fonte: http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2012/09/30/o-mais-grave-dos-riscos-467687.asp