sábado, 29 de setembro de 2012

Afasta de nós essa crise

Por Zuenir Ventura - "O Globo" - 29/09/2012

A crise está na moda, pelo menos na Europa ou em alguns de seus países. Contra ela, têm saído às ruas portugueses, gregos e espanhóis em manifestações como as de Madri e Atenas, com direito a violenta repressão policial. Dá vontade de dizer: vocês são nós ontem. Também já gritamos “abaixo o FMI” e “o povo unido jamais será vencido”.


Quem nos anos 70 acompanhou a transição da ditadura para a democracia de Portugal e Espanha, contemporânea à nossa, dando-nos lições de competência política, ensinando-nos como atingir equilíbrio econômico sem hiperinflação, sem traumas, enfim, quem sentiu inveja do renascimento português, da movida madrilhenha e de todos os sinais da outrora pujante península ibérica, não se conforma com o que está acontecendo hoje.

Se os efeitos perversos do empobrecimento já são visíveis no campo social — presença de mendigos nas ruas, delinquência — imagine no terreno da cultura. Portugal cortou até o seu ministério, sem falar nas 40 fundações fechadas ou à míngua.

É estranho ler num jornal de Lisboa a previsão de que “2013 será o pior ano de nossas vidas”, como se 2012 tivesse sido muito melhor. Ou então no “El País”: “A cultura enfrenta o ano mais difícil da história da democracia”, tendo ao lado a informação de que os museus do Prado, da Reina Sofía e o Teatro Real — três ícones culturais — já sofreram cortes de até 65%.

Várias vezes voltei de Portugal entusiasmado com a opulência e a fartura de lá. Os portugueses gastavam de dar gosto. Pois é, foram além das chinelas. O euro da União Europeia era farto, mas um dia tinha que ser devolvido — com juros.

Como sabia disso, o governo é o principal responsável, não só o de agora como o do socialista José Sócrates, que em 2011 assinou o “memorando da Troika“ (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI), declarando ser um acordo “muito bom”, porque permitia controlar o déficit público sem mexer com o 13º salário, nem com o 14º, muito menos com os empregos, nem cortes, ou seja, uma maravilha: o contrário de tudo que está ocorrendo hoje.

Enquanto isso, leio que aqui 41% dos consumidores são ou já foram inadimplentes. Conheço pessoas de baixa renda ou sem recursos suficientes, comprando carro do ano, usando dois celulares, computador de último tipo, tudo pago com cartões de crédito em prestações intermináveis.

A exemplo dos portugueses de ontem, os brasileiros estão gostando de gastar. Não entendo de economia, mas, apesar das diferenças, não sei se será essa a maneira mais sensata de manter a crise afastada de nós.

Fonte: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2012/09/29/afasta-de-nos-essa-crise-por-zuenir-ventura-467770.asp

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Errei, sim

Por Joaquim Ferreira dos Santos - "O Globo" - 17/09/2012

Meu caro Artur Xexéo,
Achei de extrema correção ética seu gesto de vir a público, rasgar a camisa e abrir o peito ferido para a confissão de erro na deliciosa história de ter chamado de Roberto, num perfil de página inteira, um sujeito que era Ricardo. Foi uma peça de brilho e bom humor que já imagino servindo de tema nas escolas de Comunicação. Parabéns. Venho aqui para elogiar o colega, manifestar minha solidariedade, mas também cartar marra. Já errei mais, Xexéo. Foram tombos estrondosos e, cá entre nós, inevitáveis a quem abraça um trabalho desses.

Não quero te desestimular nem torcer contra, mas, tenha certeza, outros virão.

O jornalismo diário é dos maiores exercícios de humildade que o ser humano pode praticar. Pedimos informações como quem mendiga a subsistência, como quem cata latinhas no fim de um show de rock. Temos o reconhecimento constitucional de que não somos obrigados a saber nada em profundidade, sendo-nos indispensável apenas um estilo de escrever que exclua expressões como “sendo-nos” e a imensa curiosidade. Ela nos absolve para as perguntas mais elementares, renova o sangue para continuar a eterna busca por carne nova. Leia na minha camisa, Xexéo: “Eu nada sei, mas quero”.

Os pontos cardeais de nossa bússola existencial são Quem? Quando? Como? Onde? e Por quê? Com essas interrogações vamos longe. Sempre que abdiquei delas, errei feio — como vou demonstrar.

Meu saudoso pai, com os tamancos da objetividade que trouxe de Trás-os-Montes, não se conformava quando me flagrava na ignorância de alguma coisa. “Um jornalista, e não sabes?”, dizia. Pacientemente, eu redarguia, evidentemente usando outro verbo, com um “que tal encontrarmos uma boa fonte?”.

Não vejo outra definição para esse trabalho. Eu pergunto, você pergunta, e em seguida, como faz a empacotadora das Casas Bahia com os eletrodomésticos, nós empacotamos as respostas de um jeito bonito para o leitor.

Você deve conhecer, Xexéo, a piada de que a maneira mais prática de um jornalista se suicidar é saltando de cima de seu próprio ego. Acho que foi feita por quem nos olhou de longe. O Zuenir Ventura sempre me disse: “Jornalista não sabe nada, só sabe a quem perguntar”. O Elio Gaspari me corrigia sempre que eu apresentava um texto em que, à guisa de pretenso estilo, eu fazia umas perguntas para o leitor. Paciente, Gaspari cortava aquele brilhareco de garoto e ainda se dava ao trabalho de explicar: “O leitor te paga pra fazer perguntas ao entrevistado, não a ele”.

Errei, sim, Xexéo, manchei o meu nome sempre que não perguntei. Eu assinei, por exemplo, décadas atrás, uma nota anunciando a demolição implacável do restaurante Assirius, do Teatro Municipal. Ainda jovem e sem a humildade que a velhice e a profissão vão formatando, não perguntei nada a ninguém. Corri, açodado como imaginava ser o espírito da coisa, para colocar no chão o monumento, embora de gosto duvidoso, instalado no subsolo do teatro. Tratava-se, soube minutos depois de o jornal na rua, de um botequim, também na Rio Branco, mas na Praça Mauá, com o mesmo nome de Assirius.

Eu fracassei sempre que desprezei a humildade de checar a grafia exata de palavras duvidosas (já imprimi “bossal”, que de brincadeira talvez possa até significar “cheio de bossa”, para identificar um sujeito oposto, o “boçal”). Fracassei sempre quando tive a soberba da sabedoria, essa doença juvenil. Na semana passada mesmo, passei um texto inteiro elogiando a música “Bode velho”, que creditei exclusivamente a Sérgio Sampaio, quando ela também pertence ao grande letrista Sérgio Natureza.

Enfim, Xexéo, você não está só. Eu poderia escrever outras colunas sobre as erratas a que fui obrigado pela pressa, a ignorância e a ausência da pergunta certa à pessoa exata. Fico por aqui, na segurança de que quanto menos se escreve, menos erros se comete — e só quem não escreve viverá a glória do erro zero. Recentemente, numa crônica sobre o fim do “Jornal do Brasil”, quis fazer o elogio público de jornalistas com quem trabalhei lá e matei sem dó o coleguinha Luarlindo Ernesto, que graças a Deus continua entre nós.

Já foi o tempo em que colocávamos a culpa no revisor, mas, estes sim, estão praticamente mortos, e agora é tudo com quem assina. Erramos, tentaremos diminuir a taxa desse colesterol ruim com muito exercício, mas os equívocos continuarão assim mesmo, e o importante, Xexéo, é que os jornais façam como você fez, publiquem a retificação.

Definitivamente, não é verdade a outra piada, de que o médico pensa ser Deus, o jornalista tem certeza. Erramos, sim, manchamos diariamente o nosso nome, e eu não poderia terminar esse texto de solidariedade sem abraçar o colega de um grande jornal paulista. Ele foi obrigado a uma errata no dia seguinte à publicação de uma matéria que, num certo trecho, passava pela morte de Jesus Cristo. A coisa não tinha sido exatamente como ele descrevera no texto, e daí veio a retificação: “Diferentemente do publicado na edição de ontem, Jesus Cristo morreu crucificado e não enforcado”.

Que Deus o proteja, a errata o absolva e a sorte o persiga. Se tivesse enforcado Maomé, o jornalista estaria morto.

Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/errei-sim-6112268