terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A Náusea

Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo - 11/12/2012

O grande Cole Porter tem uma letra de música que diz: "Conflicting questions rise around my brain/ Should I order cyanide or order champagne?" ("Questões conflitantes rondam minha cabeça/ devo pedir cianureto ou champanha?")

Sinto-me assim, como articulista. Para que escrever? Nada adianta, nada. E como meu trabalho é ver o mal do mundo, um dia a depressão bate. A náusea - não a do Sartre, mas a minha. Não aguento mais ver a cara do Lula, o homem que não sabe de nada, talvez nem conheça a Rosemary, não aguento mais ver o Sarney mandando no País, transformando-nos num grande "Maranhão", com o PT no bolso do jaquetão de teflon, enquanto comunistas e fascistas discutem para ver quem é mais de "esquerda" ou de "direita", com o Estado loteado por pelegos sem emprego, não suporto a dúvida impotente dos tucanos sem projeto; não dá mais para ouvir quantos campos de futebol foram destruídos por mês nas queimadas da Amazônia, enquanto ecochatos correm nus na Europa, fazendo ridículos protestos contra o efeito estufa; não aguento mais contar quantos foram assassinados por dia, com secretários de segurança falando em "forças-tarefas" diante de presídios que nem conseguem bloquear celulares, não suporto a polêmica nacionalismo-pelego x liberalismo tucano, tenho enjoo de vagabundos inúteis falando em "utopias", bispos dizendo bobagens sobre economia, acadêmicos decepcionados com os 'cumpanheiros' sindicalistas, mas secretamente fiéis à velha esquerda, que só pensa em acabar com a mídia livre, tremo ao ver a República tratada no passado, nostalgias masoquistas de tortura, indenizações para moleques, heranças malditas, ossadas do Araguaia e nenhuma reforma no Estado paralítico e patrimonialista, não tolero mais a falta de imaginação ideológica dos homens de bem, comparada com a imaginação dos canalhas, o que nos leva à retórica de impossibilidades como nosso destino fatal e vejo que a única coisa que acontece é que não acontece nada, apesar dos bilhões em propaganda para acharmos que algo acontece. Odeio a dúvida de Dilma, querendo fazer uma política modernizante, mas batendo cabeça para o PT, esse partido peronista de direita.

Não aturo a dúvida ridícula que assola a reflexão política: paralisia x voluntarismo, processo x solução, continuidade x ruptura; deprimo quando vejo a militância dos ignorantes, a burrice com fome de sentido, balas perdidas sempre acertando em crianças, imagens do Rio São Francisco com obras paradas e secas sem fim, o trem-bala de bilhões atropelando escolas e hospitais falidos, filas de doentes no SUS, caixas de banco abertas à dinamite, declarações de pobres conformados com sua desgraça na TV; tenho engulhos ao ver a mísera liberdade como produto de mercado, êxtases volúveis de 'descolados' dentro de um chiqueirinho de irrelevâncias, buscando ideais como a bunda perfeita, bundas ambiciosas querendo subir na vida, bundas com vida própria, mais importantes que suas donas, odeio recordes sexuais, próteses de silicone, pênis voadores, sucesso sem trabalho, a troca do mérito pela fama, não suporto mais anúncio de cerveja com louras burras, abomino mulheres divididas entre a 'piranhagem' e a 'peruice', repugnam-me os sorrisos luminosos de celebridades bregas, passos de ganso de manequim, notícias sobre quem come quem, horroriza-me sermos um bando de patetas de consumo, rebolando em shoppings assaltados, enquanto os homens-bomba explodem no Oriente e Ocidente, desovando cadáveres na Palestina e em Ramos, ônibus em fogo no Jacarezinho e Heliópolis, a cara dos boçais do Hamas querendo jogar Israel no mar e o repulsivo Bibi invadindo a Cisjordânia, o assassino pescoçudo Assad eliminando o próprio povo, enquanto formigueiros de fiéis bárbaros no Islã recitam o Alcorão com os rabos para cima, xiitas sangrando, sunitas chorando, tudo no tão mal começado século 21, século 8.º para eles ainda, não aguento ver que a pior violência é nosso convívio cético com a violência, o mal banalizado e o bem como um charme burguês, não quero mais ouvir falar de "globalização", enquanto meninos miseráveis fazem malabarismo nos sinais de trânsito, cariocas de porre falam de política e paulistas de porre falam de mercado, museus pós-modernos em forma de retorcidos bombardeios em vez da leveza perdida de Niemeyer, espaços culturais sem arte nenhuma para botar dentro, a não ser sinistras instalações com sangue de porco ou latinhas de cocô de picaretas vestidos de "contemporâneos", não aguento chuvas em São Paulo e desabamentos no Rio, enquanto a Igreja Universal constrói templos de mármore com dinheiro arrancado dos ignorantes sem pagar Imposto de Renda, festas de celebridades com cascata de camarão, matéria paga com casais em bodas de prata, políticos se defendendo de roubalheira falando em "honra ilibada", conselhos de ética formado por ladrões, suplentes cabeludos e suplentes carecas ocultando os crimes, anúncios de celulares que fazem de tudo, até "boquete"; dá-me repulsa ver mulheres-bomba tirando foto com os filhinhos antes de explodir e subir aos céus dos imbecis, odeio o prazer suicida com que falamos sem agir sobre o derretimento das calotas polares, polêmicas sobre casamento gay, racismo pedindo leis contra o racismo, odeio a pedofilia perdoada na Igreja, vomito ao ver aquele rato do Irã falando que não houve Holocausto, cercados pelas caras barbudas da boçal sabedoria de aiatolás, repugnam-me as bochechas da Cristina Kirchner destruindo a Argentina, a barriga fascista do Chávez, Maluf negando nossa existência, eternamente impune, confrange-me o papa rezando contra a violência com seus olhinhos violentos, não suporto Cúpulas do G20 lamentando a miséria para nada, tenho medo de tudo, inclusive da minha renitente depressão, estou de saco cheio de mim mesmo, desta minha esperançazinha démodé e iluminista de articulista do "bem", impotente diante do cinismo vencedor de criminosos políticos.

Daí, faço minha a dúvida de Cole Porter: devo pedir ao garçom uma pílula de cianureto ou uma "flute" de champagne rosé?

Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-nausea-,971949,0.htm



segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

E você, faria o quê?

Por Dorrit Harazin - O Globo - 09/12/2012


Início da tarde de segunda-feira passada em Nova York. Na estação de metrô da Rua 47 com Sétima avenida, um morador de rua arruma encrenca com um desconhecido na plataforma da linha Q. Cena
urbana corriqueira num sistema de transporte utilizado diariamente por 5,2 milhões de usuários.

Após uma altercação rápida, o encrenqueiro empurra o senhor de 58 anos para o fosso de trilhos da estação. Na plataforma, alguns passageiros gritam, outros agitam os braços ou ouvirem o apito do trem. Mas o condutor já nada pode fazer. A vítima também não — restou-lhe a eternidade de quinze segundos para ver o vagão de frente.

No dia seguinte o tabloide “New York Post” estampou uma foto de página inteira que mostra o trem adentrando a estação com seus dois faróis a iluminar a tragédia anunciada. No fosso, vê-se a vítima de costas voltada para o vagão, a tentar erguer-se para a plataforma. Os últimos poucos metros ainda os separam. Sobre a imagem, um título em letras garrafais: “CONDENADO — empurrado sobre os trilhos, este homem vai morrer.”

A partir daí o morto foi esquecido, tragado por outra polêmica: é dever do fotógrafo — profissional ou amador — intervir quando uma tragédia se apresenta à sua frente? É jornalismo ou voyeurismo induzido publicar uma imagem de morte iminente, de impacto previsível sobre a emoção e a imaginação do leitor?

A questão não é nova. De Walter Benjamin (“Pequena história da fotografia”) ao recém-publicado “About
to Die: How News Images Mode the Public” (ainda sem tradução no Brasil), de Barbie Zeliger, passando pelo clássico de Susan Sontag (“Diante da dor dos outros”), a complexa relação entre fotojornalismo e humanidade continua a atormentar.

Fotografias do Holocausto, da Revolução Cultural chinesa, de linchamentos de negros nos Estados Unidos,
de genocídios ou corpos que despencaram das Torres Gêmeas são perpetuamente analisadas sob este
prisma.

Um caso citado à exaustão como exemplar desse impasse moral é o do sul-africano Kevin Carter, autor da foto premiada com o Pulitzer de 1993. A imagem mostra uma menina africana esquálida, à beira da inanição, acocorada num chão empoeirado do Sudão. Atrás dela, na mesma terra batida, um abutre quase maior do que a menina está à espreita.

Carter contou que permaneceu imóvel por 20 minutos à espera de que a ave abrisse as asas para melhor
compor o cenário do horror. Mas o urubu não se mexeu. Ainda assim, a imagem tornou-se ícone e catapultou o autor para a fama.

Junto com a fama veio a cobrança: por que ele não largou a câmera e foi socorrer a menina? Carter suicidou-se um ano após receber o Pulitzer e são frequentes as associações entre uma coisa e outra. Elas são indevidas, por simplistas.

Sua vida extraprofissional sempre fora sujeita a tormentas profundas. Seus muitos anos de coberturas de
tragédias humanas, narradas em parte num livro obrigatório sobre o tema (“Clube do bangue-bangue”, de Greg Marinovich e João Silva), apenas agravaram o quadro.

Agora, foi com ímpeto de justicialismo moral que a opinião pública se voltou contra Umar Abbasi, o autor
da foto do morto no metrô.

De acordo com sua versão do ocorrido, naquela segunda-feira ele havia concluído um serviço para o “Post” e entrara na estação com uma mochila contendo 10kg de equipamento nas costas. Trazia a câmera na mão, como sempre.

Em determinado momento, ouviu uma grande agitação na plataforma mais à frente. Levou alguns segundos
até entender o que ocorria. “Ao ver as luzes da composição à distância me ocorreu alertar o maquinista disparando o flash. Bati as chapas segurando a câmera com meu braço estendido, longe dos olhos”, relatou. Pelas suas contas, disparou o flash 49 vezes, sem focar nem mirar no homem nos trilhos, prática corriqueira de quem não tem visão direta do objeto a ser fotografado.

Abbasi não se conforma em ser alvo, sozinho, do linchamento moral. Com razão. Nem um único passageiro
da plataforma se aproximou do fosso para tentar içar a vítima a tempo; apenas gritavam para que ela saísse
dos trilhos. Pior: praticantes da cultura da imagem instantânea, muitos ainda sacaram seus smartphones
e se puseram a fotografar o corpo sendo retirado após o choque. Apenas (ainda) não as revenderam.

Passada uma semana de estridência nas redes sociais, o autor do empurrão fatal foi identificado e preso e
Abbasi recebeu algum respiro. Afinal, a obrigação moral de intervir ou não deveria ser indistinta para fotógrafos ou meros transeuntes. São decisões tomadas em frações de segundos diante de situações extremas que nem sempre seguem a lógica da razão. Que o digam as inúmeras vítimas de assalto no Brasil que reagem de forma imprevisível.

“Estamos falando de meros reflexos. Você está no piloto automático e nem sempre atua de forma racional”,
declarou em defesa de Abbasi o britânico Stuart Franklin, ex-presidente da agência Magnum e autor da famosa foto do manifestante chinês que enfrentou a fileira de tanques na Praça da Paz Celestial, em 1989.

Por sorte, nem todos os bípedes têm reflexos iguais. Cinco anos atrás, um jovem estudante de cinema perdeu a consciência por alguns segundos e caiu nos trilhos de uma estação de metrô do Harlem. O operário da construção civil Wesley Autrey, de 51 anos, estava na plataforma com as filhas de 4 e 6 anos de idade. Num impulso, entregou as meninas a um desconhecido a seu lado e saltou para o fosso. Ali, arrastou o jovem desacordado para o vão dos trilhos, de meio metro de profundidade, e o cobriu com o próprio corpo. Assim permaneceu até a parada do trem, que estacionou 2,5cm acima de ambos. Foram resgatados 40 minutos depois, com pouquíssimos machucados. Autrey é saudado e reconhecido até hoje como o “Herói do Metrô”.

Na época, ganhou um jipe Patriot, uma bolsa de estudos para cada filha, várias comendas e presentes. Continua trabalhando como operário. Considera-se um homem feliz.

Dorrit Harazim é jornalista

domingo, 9 de dezembro de 2012

Ainda existem heróis?

Por Helena Celestino - O Globo - 09/12/2012

Passaram-se cerca de 22 segundos entre o primeiro grito e o momento em que o trem atingiu o homem. No país do mítico John Wayne e do indestrutível Super-Homem, nenhum herói apareceu para evitar a tragédia, ninguém naquela plataforma botou de lado o medo e escolheu agir para salvar o cara.

O que você faria? O fotógrafo freelancer R. Umar Abassi registrou a cena. Muitas vezes. Na versão dele, disparou o flash, freneticamente, na esperança de alertar o maquinista e fazê-lo parar o trem a tempo. Nem olhou as fotos, entregou o chip da memória na redação e só reapareceu dois dias depois para se defender das críticas.

“A verdade é que eu não conseguiria alcançar aquele homem”, argumenta. Nas imagens captadas pelo fotógrafo, as pessoas na estação de metrô também pareciam imobilizadas. Testemunhas contam que muitos gritaram, acenaram, a maioria sacou o celular e filmou.

A polícia usou as imagens para prender o assassino, um morador de rua, conhecido pelos comerciantes de Times Square, a quem ajudava a montar e desmontar barracas, em troca de US$ 10 a US$ 40. Todos viram o bate-boca dele com Suk Han e, momentos depois, o empurrão para a morte. “Foi tudo tão rápido”, repete o fotógrafo.

Tirar a foto pode ser quase um reflexo, acha Aypery Karabuda, diretora de imagem da maior agência do mundo, a Thomson Reuters. “Vender é outra história e a decisão de publicar merece uma reflexão”, diz.

O tratamento dado pelo “New York Post” à imagem não foi intempestivo. Levou em conta o impacto comercial e o apelo emocional da foto, publicada dois dias seguidos na capa do tabloide, com o mesmo título: “Este homem está prestes a morrer”. Reproduzida infinitamente em programas de televisão, mídias sociais e blogs, a primeira página do jornal foi quase unanimemente considerada de extremo mau gosto. Não tem sangue, mas é chocante a exploração da luta solitária do homem para escapar da morte, bem no centro de uma das cidades mais movimentadas do mundo. O venerando “New York Times” também foi acusado de ultrapassar as fronteiras do bom gosto há poucos meses por publicar a foto do embaixador dos EUA, Christopher Stevens, sendo carregado morto na Líbia. A imagem não tinha uma gota de sangue mas reproduzia a desproteção do americano que acabara de morrer, longe de casa, no meio de um ataque violento. Foi um choque nos EUA, passou sem despertar maior atenção no Brasil.

Jornalistas, especialmente fotógrafos, são acusados de indiferença diante do perigo e da miséria ao trabalharem em situações extremas, como guerras, tragédias naturais, atentados. Não é simples saber o momento de deixar a câmera ou o gravador de lado e tentar ajudar.

“Não tenho regras, só quem está vivendo o momento pode saber”, disse o jornalista Anderson Cooper, uma estrela da CNN, acostumado a ver a morte de perto no Oriente Médio, explicando-se para o fotógrafo que documentara o crime no metrô da Rua 49.

É um fantasma que assombra todo correspondente de guerra e certamente a maioria dos repórteres durante a cobertura de tragédias. Radhika Chalassi, uma freelancer cobrindo a guerra civil no Sudão, foi obrigada a fazer uma escolha dramática que relembra a cada nova cobertura.

“Até hoje, não sei se necessariamente fiz a coisa certa”. Em depoimento ao “Guardian”, ela conta que fora com um grupo de fotógrafos a um campo de refugiados e todos se depararam com umas crianças sobreviventes, sozinhas no meio de lugar nenhum. Queria levar os meninos no carro com ela, os colegas acharam que seria perigoso, optou por avisar a um funcionário da Cruz Vermelha. No dia seguinte um jornalista encontrou crianças no mesmo lugar, impossível saber se eram outras ou as mesmas.

Novas tecnologias criam novas fronteiras éticas. Numa era em que todos têm uma câmera na mão, novos horrores serão registrados em massa em câmeras de segurança ou celulares. O direito à informação é uma conquista, mas solidariedade, compaixão e emoção fazem o mundo melhor.

Fonte:  http://oglobo.globo.com/mundo/ainda-existem-herois-6986791

Estranha forma de vida

Por Rosiska Darcy de Oliveira - O Globo - 08/12/2012

Como o competidor não dorme, para ser competitivo há que ser insone. Corre-se cada vez mais para não sair do lugar. Quem não aguenta o ritmo, enfarta


Os tempos que correm, correm para onde? Pergunta que não cala quando se instala a contradição entre os instrumentos do bem-estar e o real bem-estar, minando a qualidade de vida de todos. Os engarrafamentos que paralisam a cidade e que pioram a cada dia são o sintoma mais visível desse paradoxo. Quem sonhou ter um carro anda hoje no Rio de Janeiro na velocidade de um lombo de burro. Porque todos querem rapidez, ninguém se mexe.

Nos aeroportos brasileiros, corre-corre, atrasos e voos anulados, o estresse que daí resulta diminui substancialmente as vantagens da viagem de avião. Os ônibus estão ganhando a corrida com a Ponte Aérea, a tartaruga ultrapassando a lebre.

No plano da psicologia individual, a corrida contra o tempo é o leitmotiv da vida urbana. Dorme-se pouco, come-se rápido, fazem-se várias coisas ao mesmo tempo — cozinhando, vê-se televisão e fala-se no celular — estratégia batizada de multitarefas. O sociólogo alemão Helmut Rosa, apoiado em estatísticas, constata que a depressão tornou-se uma doença urbana globalmente epidêmica. Na origem, a fome de tempo.

A obviedade, constantemente repetida, de que as novas tecnologias aceleram o ritmo do cotidiano encobre o fato que elas nascem de um fascínio pela rapidez que sempre fez parte das ambições humanas. O e-mail, sublime invenção, tornaria a comunicação mais rápida se o volume da correspondência se mantivesse estável. Porque mais rápida, cresceu exponencialmente.

A Web, contrariamente ao esperado, fez-se devoradora de tempo. Quanto mais esse fascínio pela rapidez é satisfeito, mais nos aproximamos de seu limite fatal, o esgotamento das 24 horas do dia, não só em sua dimensão de tempo em que se acotovelam atividades desejadas e tarefas a cumprir como também em sua dimensão de esgotamento psicológico, a capacidade humana de absorver e processar informação.

A internet propicia a presença simultânea em uma infinidade de universos, uma vivência múltipla e sem continuidade. Se por um lado isso abre horizontes, informa e diverte, por outro provoca uma indigestão mental ou, no caso extremo de viciados na rede, leva à overdose. Para esses, já está à venda um aplicativo que bloqueia o uso da rede depois de um tempo determinado.

Ver no telejornal as imagens de um show de rock enquanto corre embaixo da tela uma legenda noticiando a descoberta de centenas de corpos mutilados na Síria exige uma inusitada negociação de sentimentos. Instala-se uma não discriminação que tudo aplaina.

Canais de informação dividem suas telas em quatro para multiplicar a possibilidade de imagens e dados. Assim esperam acompanhar a performance das bolsas cuja unidade de tempo de operação é inferior a um segundo. Esse exemplo flagra a força do princípio da competição, pano de fundo da aceleração. Esse princípio que inspira a economia se alastra pelo conjunto da vida: a luta pelos empregos, pelos bens de consumo, pela posição social. Como o competidor não dorme, para ser competitivo há que ser insone. Como na prova de esforço, corre-se cada vez mais para não sair do lugar. Quem não aguenta o ritmo, enfarta.

Não se trata de demonizar a tecnologia que, indiferente, serve ao que as sociedades definem como necessidades. São instrumentos adaptados ao desejo de aceleração que todos, aprendizes de feiticeiro, imprimimos ao cotidiano.

Engarrafamentos de pesadelo, acampamentos nos aeroportos, depressões epidêmicas são sintomas de uma mesma disfunção, do esgotamento de um modo de vida a ser repensado, com a cabeça no futuro, sem saudosismos.

A título de exemplo, as horas de ponta do trânsito existem porque todos entram e saem do trabalho às mesmas horas, estendendo a todo e qualquer trabalho a lógica da fábrica. E se, em vez de apenas alargar ruas — solução espacial — se pensasse o espaçamento dos horários de expediente — solução temporal? Essa ideia inovadora que age não sobre o engarrafamento, mas sobre os tempos da cidade, foi testada com sucesso em Milão, envolvendo empresas, escolas e prefeitura em uma solução de custo zero, fora do marco de referência do urbanismo convencional.

Quando um sistema entra em colapso duas atitudes são recomendáveis: passar recibo de que se trata de um colapso e buscar soluções fora de sua lógica. Nenhum sistema se regenera usando os mesmos recursos e soluções que o fizeram degenerar. O que está em questão não é tanto este ou aquele aspecto da aceleração que afeta nossas vidas e sim a lógica dessa estranha forma de vida. Em tela de juízo, a lógica do sempre mais e mais rápido.

Fonte: http://oglobo.globo.com/opiniao/estranha-forma-de-vida-6972437