quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Por que Maquiavel ainda é importante?

Na política, aliados não são amigos; líderes mundiais que não compreenderem essa   diferença e desconsiderarem o 'conselho' secular estarão fadados à ruína 


JOHN T. SCOTT & , ROBERT ZARETSKY, THE NEW YORK TIMES  - O Estado de S.Paulo


Há 500 anos, em 10 de dezembro de 1513, Nicolau Maquiavel enviou uma carta para seu amigo Francesco Vettori descrevendo seu dia, no qual travou discussões com agricultores locais e colocou armadilhas para capturar pássaros para o jantar. Um dia típico de um escritor de cartas atípico, que trocava as roupas sujas de lama pelas vestes que usava como autoridade importante da República Florentina.
No final da carta Maquiavel refere-se pela primeira vez a um "pequeno trabalho" que estava redigindo sobre política. Esse "pequeno trabalho" era, naturalmente, O Príncipe.
Um dos aspectos mais notáveis no caso de O Príncipe não é apenas o fato de Maquiavel tê-lo escrito, mas ter sido capaz de escrevê-lo. Dez meses antes ele fora submetido ao "strappado": um método de tortura em que, de mãos amarradas nas costas, ele era suspenso até o teto da cela na prisão e repetidamente lançado ao chão.
Na época ele supervisionava a política externa e a defesa da sua cidade natal, mas foi destituído das suas funções quando a família Médici retornou ao poder. Os novos dirigentes suspeitavam que ele tramava contra eles e decidiram interrogá-lo. Maquiavel orgulhou-se de não pronunciar uma única palavra.
Ele bem que poderia ter poupado suas palavras em O Príncipe, livro dedicado a um membro da família que ordenou sua tortura: Lorenzo de Médici. Com este livro ele pretendia convencer Lorenzo de que era um amigo cuja experiência no terreno da política e o conhecimento dos tempos antigos faziam dele um conselheiro inestimável.
A história não nos conta se Lorenzo preocupou-se em ler o livro. Mas se o tivesse feito, teria aprendido com seu suposto amigo que, na verdade, no âmbito da política não existem amigos.
O Príncipe é um manual para aqueles que querem conquistar e preservar o poder. A Renascença estava abarrotada de guias como este, mas o de Maquiavel era diferente.
Certamente ele aconselha um príncipe sobre como agir diante dos inimigos, a usar a força e a trapaça em guerra. Mas ele inova na maneira de encarar os nossos amigos. É exatamente na parte central do livro, no capítulo dedicado a este tema, que Maquiavel proclama sua originalidade.
Deixe de lado o que você imagina no tocante à política, escreve Maquiavel, e vá direto à verdade, ou seja, como as coisas realmente funcionam, o que ele chama de "verdade efetiva". Você verá que os aliados em política, seja interna ou externa, não são amigos.
Talvez outros tenham se equivocado com essa distinção porque a mesma palavra em italiano - "amici" - é usada para ambos os conceitos. Aquele que imagina que os aliados são amigos, adverte Maquiavel, está assegurando a sua ruína, não a sua preservação.
Talvez não exista mais um aluno com necessidade deste insight, e com menos probabilidade de acatá-lo, do que os americanos contemporâneos, dentro e fora do governo.
Como os moralizadores políticos que Maquiavel busca subverter, ainda acreditamos que um líder deve ser virtuoso: generoso e caridoso, honesto e leal.
Mas Maquiavel ensina que num mundo onde as pessoas na sua maior parte não são boas, temos de aprender a não sermos bons. As virtudes ensinadas nas nossas escolas religiosas e seculares são incompatíveis com as virtudes que precisamos praticar para proteger essas mesmas instituições. A força do leão e a sagacidade da raposa: estas são as qualidades que um líder precisa ter para preservar a república.
Para este líder, os aliados são amigos quando é de seu interesse que sejam (podemos, com dificuldade, acatar esta lição quando representada por um Charles de Gaulle; mas temos mais dificuldade quando se trata, digamos, de Hamid Karzai).
Além disso, diz Maquiavel, os líderes devem às vezes inspirar medo não só em seus inimigos, mas até nos seus aliados - e até mesmo nos seus próprios ministros.
O que teria pensado Maquiavel quando o presidente Barack Obama desculpou-se pelo fiasco do processo de inscrição no novo programa de saúde pública dos EUA? Longe de merecer respeito, diria Maquiavel, tudo o que ele recebeu foi menosprezo.
Como Cesare Borgia, um dos exemplos favoritos de Maquiavel, compreendeu, cabeças às vezes precisam rolar (embora neste caso Maquiavel tenha sido bastante literal, apesar de Borgia preferir cortar os corpos pela metade e deixá-los em praça pública).
Maquiavel por muito tempo foi chamado de professor do mal. Mas o autor de O Príncipe nunca exortou o mal pelo próprio mal. O objetivo de um líder é manter seu Estado (e, não por acaso, seu cargo). A política é uma arena onde buscar a virtude com frequência leva à ruína de um Estado, enquanto que insistir no que parece ser um vício resulta em segurança e bem-estar. Em resumo, jamais existem escolhas fáceis e ser prudente significa saber como reconhecer os atributos das decisões difíceis à sua frente e optar pela menos ruim como se fosse a ótima.
Aqueles que veem o mundo se não em termos maniqueístas, mas pelo menos em termos hollywoodianos, devem rechaçar estas afirmações. Talvez estejam certos, mas será um erro descartá-las sem pensar duas vezes. Se os ensinamentos de Maquiavel no tocante a amigos e aliados na política são profundamente desconcertantes, é porque ele atinge a essência das nossas convicções religiosas e convenções morais. E isto explica porque ainda hoje ele continua sendo insultado, mas também reverenciado, como na época em que viveu. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
JOHN SCOTT É DIRETOR DO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS POLÍTICAS NA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA. 

ROBERT ZARETSKY É PROFESSOR DE HISTÓRIA NA UNIVERSIDADE DE HOUSTON.
AMBOS SÃO AUTORES DO LIVRO: 'THE PHILOSOPHERS´ S QUARREL: ROUSSEAU, HUME AND THE LIMITS OF HUMAN UNDERSTANDING'

Fonte: Estadão/Internacional

domingo, 27 de outubro de 2013

O alvo duplo

Por Miriam Leitão - O Globo - 27/10/2013
 
Tatiana Farah é repórter experiente que não se assusta com pouca coisa. Ela estava na rodovia Raposo Tavares, a 54 quilômetros de São Paulo, ao meio-dia do sábado, 19, cobrindo a manifestação contra o uso de animais como cobaias. O primeiro tiro de borracha raspou sua cabeça. O segundo a atingiu nas costas. Depois, ela apanhou de cassetete, gritando que era repórter e estava ali a trabalho.
 
Tatiana, do GLOBO, é um dos 100 jornalistas agredidos nos últimos meses. Ainda está de licença médica, com hematomas das agressões a bala de borracha e cassetete. O caso dela foi um ataque, como os outros, totalmente desprovido de sentido.— Eu estava no acostamento e logo depois da primeira bala, que por pouco não atingiu minha cabeça ou olhos, gritei que era jornalista, várias vezes, mas nada adiantou. Eles atiravam a esmo, em todas as direções. Então um policial veio em minha direção. Ele saiu da pista e foi para o acostamento, onde eu estava. Gritei que era jornalista. Ele puxou o cassetete e me bateu — relata Tatiana.Tenho ouvido relato de repórteres nos últimos tempos e são sempre assim. A polícia ignora a identificação, ataca manifestantes indiscriminadamente. Tem usado métodos inaceitáveis. Os repórteres têm enfrentado também a hostilidade irracional e inaceitável de manifestantes. Mas há duas diferenças: o número dos repórteres atingidos pela polícia é maior; e a Polícia é paga com os nossos impostos e deveria estar treinada para situações de estresse na rua.O país inteiro parece despreparado para o que está acontecendo. As manifestações de junho mostraram o enorme descontentamento diante de vários problemas: a corrupção, a inflação, o colapso da mobilidade urbana, os serviços públicos deficientes. Foi uma dessas explosões inesperadas dos novos tempos digitais onde redes e ondas se formam de maneira rápida e caótica. Interesses difusos e a raiva contida explodem detonados às vezes por um pequeno evento, uma gota d’água. Nas democracias, cabe às instituições entender o que são esses movimentos sociais. E assim fazer avançar a democracia.Depois de junho vieram os protestos por interesses mais localizados: médicos, professores, protetores de animais. Cada um quis passar sua mensagem. Na maioria das vezes as manifestações começam pacíficas e, a partir de um momento, a violência da Polícia e de grupos de pessoas com o rosto coberto, atacando policiais ou o patrimônio, transformam as ruas em praças de guerras. Toda violência de manifestante tem que ser contida, mas a Polícia tem errado mais do que acertado. Em vez de contê-los, escala a agressão; em vez de isolá-los, ataca a esmo. E não há mais dúvida: mira a imprensa deliberadamente.O país está falhando por não entender o momento. Todos temos dever de casa para fazer. Os jornais precisam refletir mais sobre o novo cenário, ouvindo as diversas vozes, iluminando o que está confuso. Além de treinar seus profissionais e protegê-los nesse tempo em que eles vão buscar informação e viram alvo duplo. A Polícia tem que usar inteligência para saber de onde vem e quem são de fato os que escolheram usar métodos violentos. As autoridades têm que parar de lavar as mãos. Está na hora de terem noção do risco que todos corremos.Nenhuma escalada contra jornalista termina bem. Os jornalistas começaram a ser presos em outubro de 1975. Houve uma sequência de eventos. Até que Vladimir Herzog foi morto no dia 25. Hoje, vivemos em outro momento político, em pleno estado de direito. Mas o que está acontecendo é inquietante, perturbador e perigoso demais para ser tratado como se fossem eventos isolados.Houve um momento em que Tatiana, que havia se escondido debaixo de um carro junto com outros manifestantes, saiu e foi até a Polícia. Apresentou-se, disse que tinha se perdido de sua equipe e pediu proteção. Um policial olhou o ferimento das suas costas e disse que ela precisava ir para um hospital, mas recusou ajuda e a mandou sair dali. Para não ser novamente alvo da tropa de choque, ela se escondeu atrás de um barranco e viveu uma situação constrangedora:— Estava com medo, no meio do mato, agachada, escondida como se fosse bandida fugindo da polícia.É obrigação da boa imprensa olhar criticamente para si mesma e aperfeiçoar seu trabalho. O repórter é apenas o mensageiro e o país precisa muito entender a mensagem desse tempo de ruas tão confusas.
 

sábado, 26 de outubro de 2013

Época de Ouro

ARTIGO - ZUENIR VENTURA - O Globo - 26/10/13

Não é qualquer literatura que permite exaltar numa semana um poeta como Vinicius de Moraes e, na outra, um cronista como Fernando Sabino. Agora, em outubro, o primeiro faria 100 anos e o segundo, 90. Houve uma época — de ouro — em que se podia esbarrar com os dois numa mesma noite num bar da cidade ou na cobertura de Rubem Braga, outro cujo centenário acaba de ser comemorado. Há pouco participei em Belo Horizonte de uma mesa em que a cantora Verônica Sabino contou divertidas histórias do pai, que criou tantas sobre o dia a dia que às vezes o cotidiano parece inspirar-se nele. Há casos que a gente ouve e diz: “Isso é coisa do Fernando Sabino.” Estou me lembrando de uma cena que parece ter saído de uma crônica do criador de “O homem nu”. Aconteceu no seu enterro, o mais demorado de que se tem memória no São João Batista. Esbaforido, o jovem repórter chega atrasado e sem saber muito bem quem é o morto e muito menos quem são os amigos a entrevistar, pergunta:— E onde eu posso encontrar o Hélio Pellegrino?— Aqui mesmo — respondeu o informante, apontando para as sepulturas. O psicanalista estava morto havia 16 anos.Além dos debates, uma exposição organizada pelo filho Bernardo em forma de um labirinto de painéis de fotos e frases possibilitava mergulhar no universo do autor de “Encontro marcado”, o emblemático romance de várias gerações. Ele aparece em várias fases da vida. Aqui, com Jorge Amado ou com Louis Armstrong, ali tocando bateria ou numa praia do Rio (aliás, espera-se que a mostra venha para cá, já que Fernando foi o mais carioca dos cronistas mineiros). Nos textos, uma síntese de suas ideias e opiniões: “O otimista erra tanto quanto o pessimista, mas não sofre por antecipação.” “No fim tudo dá certo, e se não deu certo é porque não chegou ao fim.” “Não confio em produto local; sempre que viajo, levo meu uísque e minha mulher.” “Ser mineiro é não dizer o que faz, nem o que vai fazer; é fingir que não sabe aquilo que sabe; é falar pouco e escutar muito, é passar por bobo e ser inteligente.”Há uma que soa como um projeto de vida: “Antes de mais nada, fica estabelecido que ninguém vai tirar meu bom humor.” Gozador, Fernando gostava de passar trotes e implicar com os amigos. De Vinicius de Moraes, por ter se bandeado para a música popular, ele dizia: “Quem fez o Soneto de Fidelidade não pode ficar escrevendo ‘Vai, vai, vai, vai/ Não vou/ Vai vai, vai, vai,/ não vou’.” Também parodiava o poeta da paixão, fazendo uma substituição. Em vez de “infinito enquanto dure”, ele dizia que o amor só é infinito “enquanto duro”.Esse lado irreverente, brincalhão, meio infantil, essa recusa de se levar a sério talvez seja o melhor retrato daquele que escolheu como epitáfio: “Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino.”

Zuenir Ventura é jornalista

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Depois do susto



Amores, memória, humor e morte passeiam pelo novo livro do escritor gaúcho, o primeiro lançado após seu grave problema de saúde no ano passado. “Os últimos quartetos de Beethoven e outros contos” reúne dez textos, quatro deles inéditos, mas Luis Fernando Verissimo não vê influência da doença em seus textos recentes

Por Leonardo Cazes

Na noite do dia 21 de novembro de 2012, o escritor Luis Fernando Verissimo foi internado no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. O mal-estar, que parecia ser provocado por uma gripe, se revelou algo bem mais sério. Foram 24 dias até a alta, em dezembro. E Verissimo só voltou a escrever suas colunas para o GLOBO em janeiro deste ano. Logo no primeiro texto, “Desmoronamento”, ele falou sobre o assunto: a morte aparecera como uma viagem em um elevador de loja de departamentos. Em cada parada, em vez do ascensorista anunciar “Lingerie” ou “Adereços femininos”, dizia “Desce aqui e salva tua alma” e “Pense no que poderia ter sido”. No final, o prédio de lata do seu sonho não desmoronou sobre o seu corpo espatifado no chão e o escritor voltou para casa. Passados 10 meses, o escritor lança o primeiro livro após o susto, “Os últimos quartetos de Beethoven e outros contos” (Objetiva), uma coletânea que traz 10 textos de ficção, sendo quatro inéditos, entre eles o que dá nome à obra. Os outros seis foram escolhidos a partir de sua produção para os jornais, como o próprio GLOBO e “O Estado de S. Paulo”. A morte aparece explicitamente em dois textos: “Memória” e no inédito “A mulher que caiu do céu”.
No primeiro, um homem à beira de um ataque cardíaco consegue lembrar a receita de um martíni perfeito, de um antigo goleiro do Botafogo, mas não onde deixou os remédios. Curiosamente, o texto é o mais antigo de todos e o autor nem se lembra onde foi publicado originalmente. Já no segundo, a morte é uma mulher que não consegue cumprir a sua missão de matar o protagonista José Roberto ao sentir uma profunda empatia por ele e sua família. Em entrevista respondida por e-mail, de Porto Alegre, dois dias antes de completar 77 anos, na quinta-feira, Verissimo conta que não notou uma influência da internação nos textos do livro, até porque muitos já estavam escritos. A maior mudança, talvez, tenha sido na sua própria vida. — Sou cardíaco, mas a internação foi por outro motivo, uma solerte bactéria que atacou os rins e quase me matou. O susto não teve nenhum efeito, que eu notasse, nos textos do livro, e alguns já estavam escritos, eram pré-susto. O efeito do susto na minha vida foi o de diminuir a certeza de ser imortal, que todo mundo tem um pouco. Foi isso, passei a me sentir um pouco mais mortal — diz o escritor gaúcho. Os quatro inéditos têm em comum o protagonismo da relação entre homem e mulher. Em “Os últimos quartetos de Beethoven”, a vida de cinco garotos gira em torno da enigmática e encantadora Livia, a primeira da turma a fumar maconha, a fazer tatuagem, a usar brinco numa orelha só e, de quebra, ainda tocava violoncelo — a música é um tema caro ao autor, que toca saxofone e é integrante do grupo Jazz 6. “Livia era Livia, as divindades não precisam contar os detalhes banais da sua existência”, escreve. Já em “Lo” o menino Zé Maria, rebatizado de “José José”, se envolve em um tórrido romance incestuoso com sua mãe adotiva, uma nobre europeia decadente, Dolores Fuertes y Obregon. Os dois cruzam vários países da Europa numa fuga até que uma tragédia provoca a separação. A história do casal é uma referência aberta a “Lolita”, de Nabokov, só que com sinal invertido. No caso de “O pôster”, João e Maria formam um casal que chega aos 30 anos e vive a apreensão de receber André, o chefe de João, para jantar. Tudo indica que a visita é um teste para uma possível promoção. Antes da chegada, João decide retirar o pôster de Che Guevara pendurado na parede da sala, esconder o seu exemplar do clássico “Veias abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano, e só não consegue arrumar um lugar para os livros da mesa de centro, sobre Picasso e Francis Bacon. “Um comunista e um veado. E se ele examinar os nossos CDs? Muita Mercedes Sosa”, ironiza Maria. Depois, o interesse do chefe por João se revelará um tanto ambíguo.
 
Verissimo afirma que várias pessoas já apontaram a recorrência do tema em seus trabalhos, como na série “Comédias da vida privada”, mas ele não sabe apontar uma razão clara. — Já me chamaram a atenção para o fato de escrever muito sobre casais, e casais se desfazendo. Não é a minha experiência pessoal, estou casado há 50 anos com a mesma mulher. Talvez seja por isso mesmo que a eterna guerra entre essas duas nações, a masculina e a feminina, me atraia tanto, como um observador não combatente. Para o escritor, o que une as ficções da coletânea é a sua diversidade. — O que liga os dez textos é justamente a variedade, de tamanho e enfoque. Há coisas humorísticas e coisas mais sérias, ou pelo menos mais pretensiosas, e a ideia era essa mesmo. Mas os textos já publicados na imprensa e reaproveitados foram selecionados pela editora, o que significa que o fio não foi só eu que dei. Uma reincidência que pode ser citada é das duas homenagens a Nabokov, no conto “O expert” e no “Lo”, que é um anti-Lolita — aponta o autor. O livro também traz um conto escrito para a coletânea “Vozes do golpe”, publicada pela Companhia das Letras em 2004, com trabalhos do autor e também de Carlos Heitor Cony, Moacyr Scliar e Zuenir Ventura. “A mancha” conta a história de Rogério, um militante de esquerda que foi preso e torturado durante a ditadura militar, mas que, após um período no exílio, fica rico comprando e vendendo imóveis e terrenos. Sua vida caminha em direção aos paraísos artificiais dos condomínios fechados contemporâneos quando ele reencontra o imóvel onde acredita que foi mantido em cativeiro. E a experiência traumática retorna com todas as suas contradições com o presente. Perguntado se quando começa a escrever já sabe se sairá um conto ou uma crônica, Verissimo elaborou uma tese simples para delimitar a fronteira entre os gêneros depois do trabalho pronto: a extensão. No caso dos textos para os jornais, ele explica que já sabe o tamanho de antemão e aí a dúvida é só se escreverá ficção ou não. — A velha questão sobre o que é exatamente crônica e quando ela deixa de ser crônica e vira conto pode ser resolvida, talvez simplisticamente, com uma regra: como crônica muitas vezes também é ficção, o que a diferencia de um conto é o tamanho. Passou de um certo tamanho, é conto. Deixa de ser um veleiro e se transforma num navio e, no caso do romance, num transatlântico. No livro há textos curtos e longos, alguns escritos para o livro e outros já publicados. Mas é tudo ficção. Assim as crônicas, apesar do tamanho, foram promovidas a contos, pela companhia. É claro que quando começo a escrever uma crônica para o jornal sei que tamanho ela vai ter, para caber no espaço. Só preciso decidir se vai ser ficção ou não — argumenta ele.
Apesar de não estar presente no livro, o futebol, outra de suas grandes paixões, também teve vez na conversa. Verissimo integrou a cobertura das últimas três Copas do Mundo com o GLOBO e participou de uma entrevista exclusiva com Ronaldinho Gaúcho, em 2006, quando o craque estava no auge. O escritor continua um observador atento da seleção brasileira e tem a sua explicação para a demora do time em engrenar: o excesso de trocas de comando da equipe. — É curioso como se experimenta técnicos radicalmente diferentes para treinar a seleção, para ver qual é o estilo que funciona. Dunga foi tentado como um exemplo de dedicação pessoal, o Mano Menezes como um pensador moderado e agora o Felipão como um empolgador sem sofisticação... Como os jogadores convocados para as últimas seleções têm sido mais ou menos os mesmos, não me admira que ainda não tenham firmado um jeito de jogar. São como um elenco que recebe um script diferente de cada novo diretor. Mas o Felipão já ganhou com seu estilo “vamos lá!”. Talvez dê certo outra vez — resume Verissimo.
 
Fonte: O Globo - Prosa - sábado 28/09/2013
 
 


O ESTILO É O HOMEM?

Arnaldo Jabor - O Estado de S. Paulo
          
Meu Deus do céu! Estou revendo as provas de meu próximo livro de artigos. Vai sair pela Editora Objetiva. Rever textos é duro; todos os deslizes da vaidade aparecem ali, na cara. O desejo de bancar o inteligente, de parecer mais culto, a vontade do roubo, do plágio, ficam visíveis, em flor. E os adjetivos? "Belo, inominável, contemporâneo." E os "portantos", os "outrossins" e os "menos que..."? Devia haver uma polícia retórica. E as repetições da mesma ideia, por medo de não ser entendido? E a vontade de se esconder atrás das palavras? Quantas metáforas nos ocultam... E a esperança de atingir uma "essência", ou pelo barroco ou pelo seco? (Eu já ia escrever: ou por Gongora ou por Graciliano, numa sórdida tentação de parecer erudito.) E o desejo de ser amado? E a vontade de influir? De mudar o mundo? E o Messias que há em nós? E o S. Francisco de Assis? E, pior, os erros de português: o "o" ou "lhe", e o "infinitivo flexionado" (é esse o nome?) Ahh, mãe... "Fazer pirâmides e não biscoitos", como queria Rosa? (Nelson Rodrigues, que odiava Guimarães Rosa, dizia que ele fazia "pirâmides como bolos de confeitaria".) Ou então "Biscoitos finos para a massa", como queria o Oswald? Ou o "Seja burro!", como queria o Nelson? Ser o quê? (Tem circunflexo?) "Por que, porque ou por quê"? Escrever é uma barra.
"O estilo é o homem", disse o célebre Buffon (quem terá sido ele?) ou "o Homem é o estilo", como disse Lacan, que eu estudei um pouco, mas... quão pouco sei... Lembro que Rubem Braga dizia que despediria o redator que escrevesse: "Tirante, é óbvio…" ou que "o trem ficou reduzido a um montão de ferros retorcidos…". Eu serei um deles?
E os desejos inconfessáveis? E a vontade de ser sempre "progressista", de jamais ser chamado de "reacionário"? E o desejo de enganar, mentir, roubar o leitor, "meu semelhante e irmão", como dizia Baudelaire, em almanaques para falsos chutadores.
E a busca do elogio? Às vezes, quebro a cara, com o elogio rancoroso: "Você escreve melhor do que filma". E o contrário: "Você devia era filmar e parar de dizer bobagem no jornal...". E o elogio terrível e burro: "Rapaz, você pra mim é o melhor escritor, depois do fulano de tal (uma besta, claro...)". Ou o elogio errado: "Cara, aquele artigo que você fez a favor do neoliberalismo foi ótimo!".
E os inimigos? Sempre de olho em meus erros. E como eu escrevo na navalha fina entre o sim e o não, entre o bem e o mal (viram como eu tento uma complexidade não maniqueísta?) ou melhor dizendo, como eu tento uma distância brechtiana do mundo, um "verfremdung effect" (viram? Alemão...) diante dos fatos ou, como eu tento fugir de definições fechadas, sou alvo de ataques de imbecis que querem subir na vida pelo "aplique" de uma "negatividade lucrativa" (upa!...) ou seja, como eu acho que a verdade está entre a cruz e a caldeirinha, sou bom alvo para as minhocas fascistas, principalmente as que se chamam de "esquerdistas" ou até de nazistinhas mesmo, que me acham "criptocomuna".
Rever um livro é "vê-lo com os olhos dos outros". (ohhh...) Que vão dizer? Meu Deus, já pensou o Luiz Ruffato ler isso? E o Antonio Candido? Se ele pega esta... E o conspícuo João Ubaldo, o grande romancista que eu lancei na Revista da UNE em 1963, com o antológico conto Josefina? Que vai dizer? Rever provas de livro é feito arrumar a casa, como minha mãe dizia: "Não reparem..., a casa não está arrumada ainda...". Em suma, como ser humilde e maravilhoso? Como arranjar um título que englobe minha "complexa alma"? Que seja simples, discreto, e "profundamente inteligente"? Terei sido suficientemente indecifrável para ser contemporâneo e genial como David Foster Wallace ou para evitar a farsa de gente como Murakami? E o Bolaño? Conseguirei o inexplicável sucesso, como em Detetives Selvagens? Terei lido a Review of Contemporary Fiction com afinco? Como escrever sem esperança de sentido? Tenho de caprichar bastante para ser "distópico". (Viram, como tento me atualizar?)
E aí lembrei de Nelson quando diziam que seu texto era coloquial e pobre: "Só eu sei o trabalho que me dá empobrecer meus textos" ou de João Cabral: "Não perfumar a flor..." ou do Eça-narrador querendo impressionar o Fradique Mendes: "A forma de V. Exa. é um mármore divino com estremecimentos humanos" ou Mallarmé ("La chair est triste, hélas, et j'ai lu tous les livres" ou "Definir é matar; sugerir é criar!". (Profusas citações... viram?)
Em seguida, mostrarei alguns vexames que eu tirei do original (ohh, como ele é autocrítico e sincero!): "Mede-se esta ideia pela eficiência de uma práxis" ou "Michelangelo fez Pietà arrastado pelo amor de atingir o gesto humano no mármore". Eu escrevi isto? Escreveu sim, seu idiota. Ou isto: "Tudo não passa de indignação transida de esperança, remota oscilação na escala Richter da alma". Ou ainda: "Já começou o tempo de se tecer uma nova fome de utopias". E, os espantosos: "Há algo de sodomia purificadora naquele ritual sem Deus" e "nauseados, lamentamos o estar no mundo". Pode, uma coisa dessas? Já os arranquei do texto. E o que me escapou e que meus inimigos verão com a "maligna lupa do rancor"? (Opa!...)
Outra coisa angustiante é rever seus próprios truques. Movemo-nos entre quatro ou cinco categorias, meia dúzia de conceitos, somos muito mais falados pelas palavras do que as falamos (oh, truísmo!...). Rever provas é se rever num espelho cruel (anúncio de cosmético?). Então o que resta de mim nisto tudo? O espaço entre as palavras? Não sei, mas publicar um livro é morrer um pouco... (Coelho Neto?), publicar um livro é padecer num paraíso (quem?), publicar um livro é fugir da morte (Nietzsche?), publicar um livro é sublimar uma sexualidade perversa (Freud?), publicar um livro é o espírito querendo se libertar da finitude (Hegel?). É o que, afinal?

Fonte: www.estadão.com.br/cultura



           

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A troca

VERISSIMO - O Estado de S.Paulo
           
A substituição da máquina de escrever pelo computador não afetou muito o que se escreve. Quer dizer, existe toda uma geração de escritores que nunca viram um tabulador (que, confesso, eu nunca soube bem para o que servia) e uma literatura pontocom que já tem até os seus mitos, mas, mesmo num processador de texto de último tipo, ainda é a mesma velha história, uma luta por amor e glória botando uma palavra depois da outra com um mínimo de coerência, como no tempo da pena de ganso. O novo vocabulário da comunicação entre micreiros, feito de abreviações esotéricas e ícones, pode ser um desafio para os não iniciados, mas o que se escreve com ele não mudou. Mudaram, isso sim, os entornos da literatura. Não existem mais originais, por exemplo. Os velhos manuscritos corrigidos, com as impressões digitais, por assim dizer, do escritor, hoje são coisas do passado - com o computador só existe versão final. O processo da criação foi engolido, não sobram vestígios. Só se vê a sala do parto depois que enxugaram o sangue e guardaram os ferros.
Nos jornais, o efeito do computador foi muito maior do que o fim da lauda rabiscada e da prova de paquê. O computador restabeleceu o que não existia nas redações desde - bem, desde as penas de ganso. O silêncio. Um dia alguém ainda vai escrever um tratado sobre as consequências para o jornalismo mundial da substituição do metralhar das máquinas de escrever pelo leve clicar dos teclados dos micros, que transformou as redações, de usinas em claustros. A desnecessidade do grito para se fazer ouvir mudou o caráter do jornalista para melhor ou o fim da identificação com um honesto e barulhento trabalho braçal lhe roubou a velha fibra? Talvez ainda seja cedo para saber.
Mas é no futuro que a troca do preto no branco pelo impulso eletrônico fará a maior confusão. A internet está cheia de textos apócrifos, inclusive alguns atribuídos a mim pelos quais recebo xingamentos (e tento explicar que não são meus) e elogios (que aceito, resignado), e que, desconfio, sobreviverão enquanto tudo que os pobres autores deixarem feito por meios obsoletos virará cinza e será esquecido. Nossa posteridade será eletrônica e, do jeito que vai, será fatalmente de outro.
 
 

O papel do advogado

Por Eduardo de Moraes - O Globo - 16/09/2013
 
As vésperas do desfecho da Ação Penal nº 470 - a do mensalão -, nos deparamos com artigos variados, cujos autores, tanto leigos quanto profissionais do Direito, abordam a lentidão do julgamento, com críticas a alguns ministros pelos extensos votos. Outros, em número menor, contaminados pela pressão popular por uma condenação, fulminam o papel do advogado criminal.
É preciso reconhecer como salutar para a democracia e para uma justa decisão judicial a apresentação de recursos - os embargos de declaração e os infringentes - e os profundos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, com suas discussões e debates acalorados.
E não há como se indignar com o fato de alguns definirem o papel do advogado, e sua efetiva contribuição para a sociedade democrática, com expressões como "chicaneiro" e "manuseador de medidas protelatórias". Fazem um desfavor à Justiça.
A Constituição brasileira, em seu artigo 5º, LIV, garante que "aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes". É dever e direito do advogado utilizar-se do recurso, ferramenta legítima e jurídica, tantas vezes quantas nosso ordenamento jurídico permitir, buscando reverter o que se entende como injustiça.
Mais grave, ainda, são aqueles que questionam se seria ético o advogado criminal defender acusado de ato lesivo ao interesse público. É ética, legítima e legal, sim, nossa atuação profissional. O estado democrático tem princípios básicos: do devido processo legal; da ampla defesa; da legalidade; da razoabilidade; da presunção de inocência; da proporcionalidade.
Importante lembrar a secular resposta de Rui Barbosa a Evaristo de Moraes, encartada em "O dever do advogado". Naquela oportunidade, meu avô, ao consultar o nosso patrono, Rui Barbosa, sobre a conveniência de atuar na defesa de um adversário partidário de ambos, ouviu a resposta: "Tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Eis por que, seja quem for o acusado, e por mais horrenda que seja a acusação, o patrocínio do advogado, assim entendido e exercido assim, terá foros de meritório, e se recomendará como útil à sociedade."
E sobre aqueles que criticam a cobrança de justos honorários, importante salientar que, seja quem for o cliente, incumbe ao advogado trabalhar, com afinco e sem constrangimento, sendo devidamente remunerado, como em toda e qualquer profissão. Nas palavras, novamente, de Rui Barbosa, o verdadeiro advogado é aquele que não nega "jamais ao atribulado o consolo do amparo judicial e nunca fez da banca balcão, nem da ciência, mercadoria".
Esse é o nosso papel. E nossa contribuição para a democracia. Sem adjetivos, sem excessos. Cumprimos a Constituição. Nos orgulhamos de nosso trabalho. E não criamos recursos jurídicos. Seguimos a Lei e as leis. São os nossos parâmetros.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Me engana que eu gosto

Elio Gaspari, O Globo


David Miranda, brasileiro preso e interrogado pela polícia inglesa. Foto: O Globo

Com o conhecimento do governo americano, a polícia inglesa deteve por cerca de nove horas e interrogou no aeroporto de Heathrow o cidadão brasileiro David Miranda, que desembarcara de um voo procedente de Berlim, a caminho do Rio de Janeiro.

O chanceler Antonio Patriota disse que o episódio “não é justificável” e informou que os dois governos continuarão tratando do caso. Já o embaixador da Grã-Bretanha em Brasília foi mais preciso: o assunto “continua sendo uma questão operacional da Polícia Metropolitana de Londres”. Aleluia: Sua Majestade tem um governo que fala claro na defesa dos seus interesses.

Patriota precisa definir o que “não é justificável”, pois o embaixador inglês justificou-se. Nada de novo. Em julho de 2005 o brasileiro Jean Charles de Menezes, que vivia em Londres com todos os papéis em ordem, saiu de casa, entrou num vagão de metrô e tomou sete tiros na cabeça. A Polícia Metropolitana de Londres confundira-o com um terrorista e “lamentou o episódio”. Sua família recebeu uma indenização de cem mil libras.

Cinco anos depois, Tony Blair, o primeiro-ministro da ocasião, publicou um livro de memórias no qual lamentou o “terrível erro”, lembrando que ficou “profundamente entristecido pelos policiais que estavam agindo de boa-fé, tentando garantir a segurança do país”. Aleluia de novo. Os governantes ingleses defendem suas polícias. Já as autoridades brasileiras agem de maneira diversa: depois da morte de Jean Charles, Blair foi convidado para prestar serviços de consultoria ao Rio de Janeiro, preparando-o para as Olimpíadas.

Nessa época o governo inglês tentava criar, nos aeroportos de Pindorama, barreiras para viajantes brasileiros. Milhares de nativos eram deportados ao descer em aeroportos europeus. Uma pesquisadora da Universidade de São Paulo foi recambiada de Madri enquanto estava a caminho de Lisboa. Só depois de alguma gritaria o Itamaraty adotou um critério de reciprocidade, devolvendo espanhóis. Veio a crise e hoje é a Espanha que manda gente para o Brasil, sempre bem recebida.

Em julho o doutor Patriota repudiou o procedimento dos governos de Portugal, Espanha, França e Itália, que negaram direito de sobrevoo ao avião do presidente Evo Morales porque se supunha que tinha a bordo o americano Edward Snowden. Deu em quê? Detiveram o companheiro do jornalista americano que divulgou os documentos secretos coletados pelo ex-funcionário da CIA.

Se governos da Europa e dos Estados Unidos acreditam que suas leis especiais justificam-se porque o combate ao terrorismo é um conflito mundial, o receituário da Guerra Fria poderia ser ressuscitado. O governo brasileiro conhece as identidades dos funcionários ingleses que trabalham para o serviço de informações e vivem aqui, sob o guarda-chuva diplomático. Basta pedir que um deles retorne ao seu país, o que não chega a ser uma punição pessoal.

Seria apenas um gesto capaz de materializar o desagrado do governo, como fez a rainha Vitoria com o ditador boliviano Melgarejo. Ele amarrara o embaixador inglês a uma mula, e a soberana mandou bombardear La Paz. Ao saber que a cidade ficava fora do alcance de seus canhões, riscou a Bolívia de seu mapa e declarou que ela não existia mais.

Elio Gaspari é jornalista.

Fonte: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2013/08/21/me-engana-que-eu-gosto-por-elio-gaspari-507665.asp




Tentando entender

Por Zuenir Ventura - "O Globo"

O ‘mídia ativismo’ que reivindicam, ou seja, o direito à parcialidade e ao engajamento, já era moda nos anos 50

A vontade de entender o que está acontecendo no país desde as passeatas de junho tem se manifestado através de artigos e ensaios, mas também por meio de palestras e mesas-redondas. Só esta semana houve dois encontros: um na segunda-feira à noite como parte do projeto OsteRio e outro ontem de manhã na Casa do Saber. Como tenho mais perguntas do que respostas sobre o momento político, assisti ao que teve como principal tema a Mídia Ninja, e participei do que tratou da mobilização jovem. No primeiro, debateu-se o papel desse coletivo de jornalistas que se destacou transmitindo ao vivo as manifestações de rua de dentro dos acontecimentos e com exclusividade, já que os repórteres da imprensa tradicional foram hostilizados e impedidos de trabalhar.
Como não disponho de espaço para resumir as muitas horas de discussões, limito-me a fornecer minhas conclusões a partir do que ouvi. A principal é que entusiastas da Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) saúdam o fenômeno como um “novo jornalismo”, ou melhor, “pós-jornalismo”, dando a impressão de que a imprensa acaba de ser inventada. No entanto, o “mídia ativismo” que reivindicam, ou seja, o direito à parcialidade e ao engajamento já era moda quando comecei na profissão nos anos 50. Deixaram de ser, e isso a meu ver foi um avanço. Também não acredito em isenção — como já dizia Goddard, a câmera ou é de direita ou de esquerda —, mas nossa obrigação é persegui-la. Não sinto saudades do tempo em que era comum o jornal pertencer a um partido, assim como não concordo que o papel da mídia seja “ativar desejo” (na terra do Ancelmo, o que ativa desejo é... deixa pra lá).
No debate de ontem, em que a maioria era formada por jovens, muitos da periferia, pude corrigir algumas impressões da véspera. Graças a uma plateia incrivelmente bem informada e aos esclarecimentos de uma garota Ninja articuladíssima na mesa, pude constatar que, para além da má vontade de parte a parte, da Ninja em relação à mídia tradicional e vice-versa, vale a pena considerar que essas práticas são ou devem ser complementares, são tecnologias convergentes e não antagônicas. Os Ninjas não inventaram o jornalismo e também não vão acabar com ele. A seu favor, porém, o fato de que, apesar dos possíveis
equívocos e da inocente presunção, eles tiveram o mérito de fazer com a imprensa o que as manifestações fizeram com a política: refletir sobre si mesma.
Um pouco como esses novos atores da cena nacional fizeram ontem com este velho jornalista — ou “pós-jornalista”?

Zuenir Ventura é jornalista


Fonte: http://oglobo.globo.com/opiniao/tentando-entender-9513694



sábado, 10 de agosto de 2013

Biscoito fino prejudica barriga tanquinho

MARCELO RUBENS PAIVA - O Estado de S.Paulo

Dá um nó na cabeça quando fecha uma publicação que assinamos. Nos sentimos como o cara que tenta comprar hoje uma fita cassete, VHS ou para máquina de escrever. Nos sentimos tão inúteis... Estamos por fora, um pária social. Não sacamos nada. O que queremos, já era. Sem contar que desprezam nosso dinheiro. Somos os zumbis de um mercado editorial sempre em movimento. Andamos como mortos-vivos, balançando os braços, em farrapos, enquanto um energético meio publicitário faz as contas, debate se valemos a pena ou se aquele outro nicho é mais dinâmico e lucrativo.

Quem viu o Jornal do Brasil encolher até virar site, o Pasquim, Opinião, Movimento, Em Tempo, Afinal, Jornal da República desaparecerem, a revista Bizz, ícone dos anos 1980, nascer, morrer, renascer, falecer, ressuscitar e sumir em definitivo em 2007, sentiu o baque. Agora, a Bravo foi cremada.

O que me deixou inconformado, pois era das poucas revistas que eu assinava, lia de cabo a rabo, me sentia compelido a ir a exposições, peças, shows ou eventos indicados. Das poucas revistas em que escritores barra jornalistas colaboravam sem discutir o cachê. E ainda se sentiam honrados pelo convite.

Na reestruturação da Editora Abril, ficaram as revistas Boa Forma, Men's Health, Women's Health, Estilo, Manequim, Máxima, Runners, Sou Mais Eu, Saúde, Vida Simples, Viva Mais, Você S/A.

Você S/A que curte saúde, tem estilo, se sente a máxima, é mais você, gosta de estar em boa forma, com o manequim enxuto, no capricho, porque quer viver mais, não ficou brava com a extinção da Bravo. Talvez nem tenha notado.

Biscoito faz mal, fino ou não. Vivemos o fim do biscoito fino. O fechamento da Bravo é a prova de que alimentar o cérebro não está mais entre as prioridades. A reestruturação da maior editora dá sinais de que o brasileiro quer viver mais sem se importar em saber menos. Se então a prioridade é a saúde, a vaidade em lua de mel com a longevidade, será que saber menos prolonga a vida? Ou será que o conhecimento até então considerado engrandecedor, como livros, teatro, exposições e filmes, são dispensáveis quando a sobrevida necessita de outro tipo de conhecimento, entrar em forma, ter saúde e controle do colesterol total e frações, glicemia, ferritina, albumina, TSH, T4L, creatina, ureia?

Nós, assinantes das revistas extintas, recebemos nesta semana pelo correio o COMUNICADO IMPORTANTE, assim mesmo, em caixa alta. "De tempos em tempos, fazemos uma análise em nosso portfólio editorial e, em algumas vezes, essa análise nos obriga a um redirecionamento", explicou o diretor de assinaturas da Abril, Fernando Costa. "Foi uma decisão difícil, acredite, sobretudo porque ela envolve você." Acredito. A Bravo era a menina dos olhos do publisher Roberto Civita, morto em maio.

O comunicado me deu uma linha direta 0800 para tratar do meu caso. Eu poderia ter de volta o dinheiro correspondente às dez edições da revista ou migrar para outra. A atendente foi tão simpática, rápida e bem-humorada, que tive a vontade de passar a tarde pedindo conselhos para outros problemas da minha vida.

De primeira, me sugeriu mudar para a Veja. Segundo ela, a Bravo seria incorporada pela Veja. Nada contra a primeira publicação em que trabalhei. Mas eu estava mal-intencionado. Ela me deu a lista de revistas para as quais eu poderia migrar. Revistas de viagem, saúde, beleza. Esperei, nada. Perguntei então encabulado se a Playboy estava nesse time. Ufa, estava. Fiquei perplexo por ela não ter me oferecido o leque de revistas masculinas. Vai ver tenho a voz de um pudico conservador. Eu poderia mudar para a revista agora sob nova gestão - do meu ex-colega Thales Guaracy, que promete reviver o tempo das grandes musas.

Mas então pensei na reação da minha mulher, da empregada, família, porteiros, hóspedes, vizinhos, do carteiro, da síndica! O fato seria comentado numa reunião de condomínio, eu poderia ser banido da área social: morador de meia-idade pervertido troca a Bravo pela Playboy, alta cultura por loiras ou morenas turbinadas, altas e mignons, em poses escandalosas e sugestivas. Vândalo condominial! Black Bloc do bloco 3.

Mudei de ideia e sugeri o dinheiro de volta, quando a atendente, de quem me arrependo de não ter pedido o telefone, para consultá-la em outras indecisões rotineiras, me sugeriu a revista Piauí. Claro, tudo a ver. O único senão: dez edições da Bravo equivaleriam a dez da Playboy, mas apenas a nove da Piauí. "A Playboy tem mulher pelada", repliquei. "O papel da Piauí é de melhor qualidade", justificou.

Fiquei contente em saber que nove Piauís valem dez Playboys. Nem tudo está perdido. No mais, pegará bem ter uma Piauí chegando em casa pelo correio. Minha mulher terá mais orgulho de mim. Minha empregada poderá fazer a faxina sem sustos. E para as visitas e hóspedes vai pegar bem ter uma pilha delas no canto da sala e outra no lavabo. Dependendo deles, teria de esconder a de Playboys. Mesmo revigorada.

O ex-editor da Bravo, meu amigo Armando Antenore, explicou numa carta sincera que a revista deu prejuízo desde quando passou para a Abril em 2004 (foi criada numa pequena editora, a D'Ávila): "Em termos comerciais, Bravo nunca gerou lucro - ao menos, não na Abril. A revista, embora contasse com o apoio da Lei Rouanet, operava no vermelho. Em bom português, dava prejuízo - ora de milhões, ora de milhares de reais".

Afirmou que a revista contava com cerca de 20 mil assinantes e 8 mil compradores em bancas. No Facebook, a publicação tinha 53.600 seguidores. Perdeu leitores com o avanço das mídias digitais num ritmo menor do que outras. Era mais caro imprimi-la, por causa de formato e papel, e tinha poucos anúncios.

"Grandes anunciantes costumam demonstrar pequeno interesse por títulos dedicados à 'alta cultura'. 'O leitor de revistas do gênero, sendo mais crítico, tende a frear os impulsos consumistas', explicam os publicitários, nem sempre com essas palavras", resumiu Antenore, que diminuiu de 114 para 98 páginas, encolheu a redação, reajustou o projeto gráfico e editorial. Em vão. Vai fazer falta.

 
 

 

segunda-feira, 22 de julho de 2013

A caixinha dos trens e dos metrôs

A Siemens resolveu colaborar com o governo e é possível que se conheça o mapa de roubalheiras de gente graúda

ARTIGO - *ELIO GASPARI - "O Globo" - 17/07/2013
 
Desde 1993, quando foi aberta a caixinha das empreiteiras com deputados da Comissão do Orçamento, não aparecia notícia tão boa para expor o metabolismo das roubalheiras nacionais. Os repórteres Catia Seabra, Julianna Sofia e Dimmi Amora revelaram que a Siemens alemã, a maior empresa de equipamentos eletrônicos da Europa, colaborará com o governo para expor a formação de cartéis que viciam concorrências para compra de equipamentos no Brasil. Ela tem 360 mil empregados em cerca de 190 países. Foram negócios de bilhões de dólares, com maracutaias das quais participava. Desta vez o Ministério Público poderá furar a poderosa blindagem de um cartel invicto.
Há sete anos o deputado Osmar Serraglio, relator da CPI dos Correios, informou que havia “denúncias que precisam ser aprofundadas”. Uma delas tratava de um contubérnio entre a empresa francesa Alstom e a Siemens para fraudar uma concorrência de R$ 78 milhões. Na denúncia havia nomes, datas e locais. Deu em nada.
Tudo bem, teria sido esperneio de concorrente. Afinal, com 110 mil funcionários pelo mundo afora, o conglomerado da Alstom era uma das maiores empresas do mercado. Ela e a Siemens foram grandes fornecedoras de máquinas aos governos brasileiros, tanto o federal quanto os de diversos estados.
Em 2008 o “The Wall Street Journal” revelou que a Alstom estava sendo investigada na França e na Suíça por ter pago propinas globalizadas. Na lista estava o Brasil, honrado com jabaculês no metrô de São Paulo (US$ 6,8 milhões em mimos) e na hidrelétrica de Itá (propina de US$ 30 milhões). Num contrato com o Metrô paulista, a Alstom e a Siemens foram parceiras.
Autoridades municipais, estaduais e federais prometeram rigorosas investigações. Um ex-diretor da área de energia da Alstom já fora preso. O assessor de um senador fora grampeado pedindo dinheiro num contrato da EletroNorte. Se isso fosse pouco, o Ministério Público suíço tinha nomes, endereços, RGs e números de contas. Lá, um diretor da empresa foi para a cadeia. No Brasil, acharam-se até comprovantes de depósitos. Mark Pieth, presidente do Grupo Anticorrupção da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, OCDE, contou que “em 2005, no Estado de São Paulo, pessoas que eram responsáveis pela compra de equipamentos não pediram suborno para eles, mas sugeriram que a empresa fizesse ‘pagamento ou presente político’, para a caixa de partido”. O estado de São Paulo é governado pelo PSDB desde 1995 e, até 2008, firmou 139 contratos com a Alstom no valor de mais de R$ 5 bilhões. Entre 2003 e 2008, o governo de Lula contratou R$ 1,2 bilhão com a empresa. Foram vãs todas as tentativas de criação de uma CPI em São Paulo. A cada blindagem, contudo, correspondia mais uma revelação. Chegou-se a um ex-presidente das Centrais Elétricas de São Paulo, CESP, que reconheceu ter recebido, na Suíça, US$ 1,4 milhão, mas, segundo ele, tratava-se apenas de uma consultoria. Já são cerca de vinte os processos que correm no MP sobre os negócios da Alstom em São Paulo.
Quando vozes mais altas se alevantam, as coisas andam devagar. A decisão da Siemens, consequência dos novos padrões de conduta de grandes empresas, poderá iluminar esse porão. Se nem isso adiantar, a situação está pior do que se pensa.

*Elio Gaspari é jornalista

 

Papel das hidrovias no Brasil é desprezado

"O Globo" - 17/07/2013

Por falta de integração dos diferentes sistemas de transportes no país, o caminhão acaba sendo mais competitivo que todos os outros modais

EDITORIAL

São conhecidas as comparações que mostram as equivalências entre diferentes modais de transportes. Um trem chega a carregar o mesmo que mais de duas centenas de caminhões e um navio de cabotagem é capaz de substituir mais de 1.200 veículos. A racionalização do sistema de transporte tenderia, então, para uma maior utilização de ferrovias e navegação marítima e fluvial, mas isso não acontece por um fator surpreendente: o modal rodoviário quase sempre é mais competitivo.

Isso porque o caminhão tem mais flexibilidade, e acaba sendo mais ágil, pois permite a entrega porta a porta. As ferrovias brasileiras têm traçado antigo, e a navegação convive com uma burocracia infernal nos portos, até mesmo nos fluviais.

Mas, embora a legislação brasileira não estimule a integração, ela tem ocorrido, na prática, no caso dos granéis, por exemplo. Caminhões fazem o transbordo de grãos, minérios e combustíveis para ferrovias, que, por sua vez chegam a portos fluviais e marítimos, onde a carga é embarcada (ou desembarcada).

Nesta intermodalidade já existem algumas iniciativas de inclusão de hidrovias. Pelo tamanho dos rios brasileiros, elas deveriam ser mais presentes no sistema de transportes. Barcos carregados de soja, levada por caminhões desde o Norte de Mato Grosso, descem o Rio Madeira, a partir de Porto Velho, até o Solimões, no estado do Amazonas, e de lá embarcam em grandes navios graneleiros. A hidrovia Tietê-Paraná, em São Paulo, enfim ganhará mais importância com as barcaças que transportarão etanol ou celulose. Mas o que dizer das demais? O rio Tocantins já poderia ter uma boa hidrovia, se as hidrelétricas construídas ao longo do seu curso contassem com eclusas (por investimento público, ou privado, sob regime de concessão). O Rio Tapajós também é citado como uma hidrovia natural.

É claro que nem sempre essas hidrovias atravessam zonas de produção agropecuária ou industrial. Mas em vários pontos elas podem se integrar aos outros modais de transporte.

Infelizmente, no planejamento recente do sistema de transportes (que prevê a construção de novas ferrovias e terminais portuários) não se cogitou das hidrovias. No passado, havia objeções de ambientalistas a essas “estradas” fluviais devido à necessidade de dragagem para mantê-las navegáveis durante grande parte do ano. Em vários casos, já existem soluções técnicas que podem minimizar esse impacto no meio ambiente.

Ao menos dentro desse quadro negativo, há uma boa notícia. São Paulo se prepara para ter uma primeira hidrovia metropolitana, de mais de 50 quilômetros, nos rios Tietê e Pinheiros para transporte de pequenas cargas, especialmente resíduos e rejeitos. Hidrovias metropolitanas são comuns na Europa (as do Sena, na França, e do Tâmisa, na Inglaterra, são as mais conhecidas). É um exemplo que o Brasil deveria seguir.
 
 

O valor do jornalismo profissional

Opinião - Época - 22/07/2013

A reportagem publicada por ÉPOCA na última edição (790) que mostrava suspeitas de fraude em duas concorrências de R$ 1,2 bilhão promovidas pelo governo do Rio de Janeiro para a contratação de empreiteiras teve efeitos imediatos. Dois dias depois de a revista ter chegado às bancas, a Secretaria de Estado do Ambiente tratou de revogar as licitações, ainda que sob queixumes do secretário Carlos Mine. Um dos contratos visa à recuperação ambiental das lagoas da Barra, um dos compromissos olímpicos do governo do Rio. O outro destina-se a conter enchentes no noroeste do Estado, em municípios que vêm sendo castigados por desastres naturais provocados por chuvas.

Os indícios de conluio e formação de cartel na concorrência apresentados pela reportagem são veementes. Depois de ter sido informada de um arranjo para que o consórcio formado pelas empreiteiras OAS, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão ganhasse as obras de recuperação ambiental das lagoas, ÉPOCA publicou um anúncio cifrado nos classificados de um jornal do Rio, em que antecipou o resultado da licitação. A reportagem mostrou ainda que não houve uma verdadeira competição para reduzir o custo de execução das obras, como esperado de uma concorrência pública.

Diante das suspeitas e da importância dos projetos para a população do Rio de Janeiro, a revogação das concorrências foi correta. Mas o significado da decisão não se esgota aí. Ela mostra a importância do jornalismo profissional, que segue critérios rigorosos de investigação e publicação das notícias, como um verdadeiro fiscal do poder. No momento em que as instituições são desafiadas por manifestantes o jornalismo profissional de qualidade, com base no interesse público, se inscreve entre aqueles valores permanentes de que uma sociedade democrática não pode prescindir.

Fonte: Revista Época, 22/07/2013, pág.10 - OPINIÃO

terça-feira, 2 de julho de 2013

‘Uma consciência surgiu. Seus frutos virão a longo prazo’

André Miranda entrevista Pierre Lévy - "O GLOBO"

Filósofo francês, uma das maiores autoridades do mundo nos estudos da cibercultura, fala sobre mobilização em redes sociais


Para Pierre Lévy, é impossível controlar a mídia social

RIO - A resposta ao pedido de entrevista é direta: “O único jeito é via Twitter”, disse o filósofo francês Pierre Lévy, uma das maiores autoridades do mundo nos estudos da cibercultura. E assim foi feito. Lévy conversou com O GLOBO na tarde de segunda, via Twitter, sobre os protestos que vêm ocorrendo no Brasil nas últimas semanas e que surgiram das redes sociais.

Nos últimos anos, muitos protestos emergiram da internet para as ruas. Como o senhor os compararia com manifestações do passado, como Maio de 1968?

Há uma nova geração de pessoas bem educadas, trabalhadores com conhecimento, usando a internet e que querem suas vozes ouvidas. A identificação com 68 está no fenômeno geracional e na revolução cultural. A diferença é que não são as mesmas ideologias.

Mas qual é a nova ideologia? No Brasil, críticos falam da dificuldade em identificar uma ideologia única nas ruas.

Uma comunicação sem fronteiras, não controlada pela mídia. Uma identidade em rede. Mais inteligência coletiva e transparência. Outro aspecto dessa nova ideologia é o “desenvolvimento humano”: educação, saúde, direitos humanos etc.

E qual seria a solução? Como os governos devem lidar com os protestos?

Lutar com mais força contra a corrupção, ser mais transparente, investir mais em saúde, educação e infraestrutura. Porém, a “solução” não está apenas nas mãos dos governos. Há uma mudança cultural e social “autônoma” em jogo.

No Brasil, um dos problemas é que não há líderes para dialogar. Qual seria a melhor forma de se comunicar com movimentos sem lideranças?

A falta de líderes é um sinal de uma nova maneira de coordenar, em rede. Talvez nós não necessitemos de um líder. Você não deve esperar resultados diretos e imediatos a partir dos protestos. Nem mudanças políticas importantes. O que é importante é uma nova consciência, um choque cultural que terá efeitos a longo prazo na sociedade brasileira.

E as instituições? Elas não são mais necessárias? É possível ter democracia sem instituições?

É claro que precisamos de instituições. A democracia é uma instituição. Mas talvez uma nova Constituição seja uma coisa boa. Porém, sua discussão deve ser ainda mais importante do que o resultado. A revolta brasileira está acima de qualquer evento emocional, social e cultural. É o experimento de uma nova forma de comunicação.

Então, o senhor vê os protestos como o início de um tipo de revolução?

Sim, é claro. Ultrapassou-se uma espécie de limite. Uma consciência surgiu. Mas seus frutos virão a longo prazo.

O que separa a democracia nas comunicações da anarquia? Pode-se desconfiar do que é publicado na mídia, mas o que aparece nas redes sociais é ainda menos confiável.

Você não confia na mídia em geral, você confia em pessoas ou em instituições organizadas. Comunicação autônoma significa que sou eu que decido em quem confiar, e ninguém mais. Eu consigo distinguir a honestidade da manipulação, a opacidade da transparência. Esse é o ponto da nova comunicação na mídia social.

O senhor teme que os governos tentem controlar as redes sociais por causa de protestos como os que ocorrem no Brasil e na Turquia?

Eu não temo nada. É normal que qualquer força social e política tente tirar vantagem da mídia social. Mas é impossível “controlar” a mídia social como se faz com a mídia tradicional. Você só pode “tentar” influenciar tendências de opiniões.

E e o risco de regimes ou ideias totalitaristas ganharem força por conta dos protestos, como já ocorreu no passado na América Latina?

Isso é pouco provável no Brasil, por conta de sua alta taxa de pessoas com educação. A chave é, como sempre, manter a liberdade de expressão, como ela é garantida pela lei. Não é preciso ter essa paranoia com o fascismo.

Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/pierre-levy-comenta-os-protestos-no-brasil-uma-consciencia-surgiu-seus-frutos-virao-longo-prazo-8809714













domingo, 23 de junho de 2013

Protesto sim, arrastão não

Zuenir ventura, O Globo


Calcula-se que mais de um milhão de pessoas participaram das últimas manifestações em todo o país. Destas, é provável que a maioria tenha sido formada por jovens entre 15 e 35 anos, ou seja, aquela turma que os americanos chamam (e nós repetimos) de “geração do milênio”, “geração internet” ou “geração me”, por ser supostamente individualista, narcisista, ansiosa, dependente dos smartphones e, sobretudo, alienada.

Uma pesquisa da revista “Time” concluiu que, entre todos os exemplares da juventude pós-moderna, essa é a de menor participação política, a de engajamento zero.

Também aqui no Brasil reclamávamos que ela não gostava de ler, não tinha projeto e só pensava em si — que se danasse o outro, o país e o mundo, já que cada um, diante do computador, criava o seu próprio universo virtual.

Ao contrário da geração de 68, dogmática e apostólica, que acreditava na vitória do proletariado, os jovens do terceiro milênio seriam menos crédulos e menos solidários, só querendo saber do aqui e agora.

O que ninguém esperava é que esses jovens tidos pelos estereótipos como os mais alienados seriam justamente aqueles capazes de “acordar o gigante adormecido” e de devolver ao país o ânimo de poder mudá-lo. E isso sem a máquina do Estado, sem a cobertura dos sindicatos, dos partidos nem das organizações sociais. Apenas com a internet.


Cobrindo a manifestação no Rio, a repórter Lilia Teles notou um pequeno cartaz com a seguinte inscrição, que poderia funcionar como uma espécie de epígrafe: “Menos eu e mais nós.” De todas as palavras de ordem lidas e ouvidas nas passeatas, estas talvez tenham sido as que melhor soam como programa e plataforma de uma geração anárquica, que não quer nem uma coisa nem outra, e que, de tão diversa, nem mesmo pode ser chamada de geração.

Se nada for feito com rigor para impedir a infiltração dos vândalos nas manifestações, o movimento vai perder o que havia conquistado: o apoio entusiasmado da opinião pública, que está sendo substituído pelo medo.

Não adianta mais alegar que esses marginais predadores constituem uma minoria, porque é uma minoria disposta a só produzir estragos. Imagens como as de ontem à tarde na Barra da Tijuca, por exemplo, mostrando grupos de jovens com o rosto coberto, agindo impunemente — quebrando vitrines, promovendo saques em lojas e depredando automóveis à venda —, tinham a ver mais com arrastão do que com protesto.

Fonte: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2013/06/22/protesto-sim-arrastao-nao-por-zuenir-ventura-500852.asp

'Passe Livre' vale mais

Por Arnaldo Jabor

Errei na avaliação do primeiro dia das manifestações contra aumento das passagens

“Eu sou um cão imperialista; eu sou o verme dos arrozais”! — assim começava a autocrítica de um alto dirigente chinês, creio que Peng Dehuai, por ousar criticar a Revolução Cultural de Mao Tsé-tung, que exterminou milhares de inocentes.

Talvez eu seja mesmo um “cão imperialista” porque, outro dia, eu errei. Sim. Errei na avaliação do primeiro dia das manifestações contra o aumento das passagens em SP. Falei na TV sobre o que me pareceu um bando de irresponsáveis pequenos burgueses fazendo provocações por 20 centavos. Era muito mais que isso, apesar de parecer assim. Pois eu, “lacaio da direita fascista”, fiz um erro de avaliação.

Este movimento que começou outro dia tinha toda a cara de anarquismo inútil. E (quem acredita?), critiquei-o porque temia que tanta energia fosse gasta em bobagens, quando há graves problemas a enfrentar no Brasil. Eu falei em “ausência de causas”, em “revolta sem rumo”.

Mas, a partir de quinta-feira, com a violência maior da polícia, ficou claro que o movimento expressava uma inquietação que tardara muito no país pois, logo que eu comecei a escrever em 1992 (quando muitos manifestantes estavam nascendo), faltava o retorno de algo como os “caras pintadas” — os jovens derrubaram um presidente.

Mas, não falo por justificar-me. Erros se explicam mas não se justificam, como diziam no serviço militar. Portanto, errei.

Mas agora peço atenção (e uma pausa nos esculachos contra mim) aos jovens que me leem, para algumas linhas sobre este fenômeno que surgiu nas redes sociais e em milhares de “sacos cheios” por tanta paralisia política no Brasil e no mundo.

Hoje eu acho que o movimento Passe Livre expandiu-se como uma força política original, até mais rica do que os “caras pintadas”, justamente porque não tem um rumo, um objetivo certo a priori. Assim, começaram vários fatos novos em países árabes, na Europa e USA. E volto a dizer que essa ausência de rumos é muito dinâmica e mutante. Como cantou Cazuza: “As ideias não correspondem mais aos fatos”, que são hoje muito mais complexos do que as interpretações que eram disponíveis, entre progressistas e reacionários.

Como bem escreveu Carlos Diegues: “O movimento é importante porque talvez o mundo tenha perdido a esperança em mudanças radicais. Talvez porque a ‘revolução’ tenha perdido prestígio para a mobilidade social. Talvez por não nos sentirmos mais representados por nenhuma força política (...) os jovens do Movimento Passe Livre trazem agora para Rio de Janeiro e São Paulo e outros estados esse novo estilo de contestação, típico do século XXI — uma contestação pontual, sem propriamente projeto de nação ou de sociedade.” É isso.

Não vivemos diante de “acontecimentos”, mas só de incertezas, de “não acontecimentos”. Na mídia, só vemos narrativas de fracassos, de impunidades, de “quase vitórias”, de derrotas diante do Mal, do bruto e do escroto.

O mundo está em crise de representatividade. Essa perplexidade provoca a busca de novos procedimentos, de novas ideologias, de uma análise mais cética diante de velhas certezas. E toda essa energia tem de ser canalizada para melhorar as condições de vida do Brasil, desde o desprezo com que se tratam os passageiros pobres de ônibus, passando pelo escândalo ecológico, passando pela velhice do Código Penal do país que legitima a corrupção institucionalizada. O importante nessas novas manifestações é que elas (graças a Deus) não querem explicar a complexidade do mundo com umas poucas causas onde se trancam os fatos.

Eu sei, eu sei que é difícil escapar do “ideologismo; sei que a ideia de complexidade é vista como “frescura” e que macho mesmo é simplista, radical, totalizante. Mas, no mundo atual, a inovação está no parcial, no pensamento indutivo, em descobrir o Mal entranhado em aparências de Bem.

Sei também que é muito encantador uma luta mais genérica, a “insustentável leveza do ser revolucionário”, que cria figuras como os “militantes imaginários” que analisei outro dia. Estes jovens saíram da condição de torcedores por um time ou um partido e estão militando concretamente. O perigo é serem esvaziados, como foi Occupy Wall Street.

É fundamental que o Passe Livre se amplie e persiga objetivos concretos.

Tudo esta parado no país e essa oportunidade não pode ser perdida. De um fato pequeno pode sair muita coisa, muito crime pode estar escondido atrás de uma bobagem. Os fatos concretos são valiosos. Exemplo: não basta lutar genericamente contra a corrupção. Há que se deter em fatos singulares e exemplares, como a terrível ameaça da PEC 37 que será votada daqui a uma semana e que acaba na prática com o Ministério Público, que pode reverter as punições do “mensalão,” pode acabar até com o processo da morte de Celso Daniel; fatos concretos como a posse do Feliciano ou o extraordinário Renan em suas duas horas de presidente da República. Se não houver “núcleos” duros dos fatos, dos acontecimentos presentes e prováveis, as denúncias caem no vazio abstrato tão ibérico e tão do agrado dos corruptos e demagogos.

Por isso, permito-me sugerir alguns alvos bons:

Descobrir e denunciar por que a Petrobras comprou uma refinaria por 1 bilhão de dólares em Pasadena, Texas, se ela só vale 100 milhões? Por quê?

Por que a Ferrovia Norte Sul, que está sendo feita desde a era Sarney, ainda quer mais 100 milhões para mais um trechinho. Saibam que na época, há 27 anos, a “Folha de S. Paulo” fez uma denúncia genial: botou na página de classificados um anúncio discreto onde estava o resultado da concorrência dois dias antes de abrirem as propostas. Claro que a concorrência era malhada. Foi um escândalo mas continuou até hoje, comandada pela Valec, de onde o ex-diretor Juquinha, indescritível afilhado do Sarney, supostamente teria tascado 100 milhões.

Por que as obras do Rio São Francisco estão secas?

Por que obras públicas custam o dobro dos orçamentos?

Por que a inflação está voltando? Por que a infraestrutura do país está destruída?

Por quê?

Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/passe-livre-vale-mais-8717407

quarta-feira, 12 de junho de 2013

O futuro do jornalismo estava na Gávea

ARTIGO - *ELIO GASPARI


A ventania reformadora dos meios de comunicação voltou ao Brasil da pior e da melhor maneira. Cortaram-se vagas e poderão ser extintos títulos que fizeram história. Esse é o aspecto fim do mundo. Há o outro, do mundo novo. De sua casa na Gávea, o jornalista Glenn Greenwald explodiu um dos grandes segredos do governo americano jogando o companheiro Obama no fosso da falta de credibilidade. Ele grampeia o mundo, inclusive seus cidadãos.

Nunca na história deste país notícia tão importante saiu daqui, muito menos da Gávea. A imprensa americana tem dezenas de repórteres especializados em segurança nacional. A maioria trabalha em Washington, com bons salários e incríveis fontes. Os mais afortunados vão todo ano ao jantar dos correspondentes da Casa Branca, com direito a tapete vermelho e a acompanhantes famosas. Pois foram batidos por um repórter que, desde 2007, trabalha no Rio. Depois de passar pelo site Salon, Greenwald está no jornal inglês “The Guardian”. Seu principal instrumento de trabalho é o computador.

Em 1969, Daniel Ellsberg, um analista do Departamento de Defesa Americano, desencantou-se com a política de seu governo no Vietnã e começou a copiar 47 volumes de um relatório secreto. Ralou meses dormindo pouco e gastou o equivalente a US$ 20 mil. Ofereceu-os a dois senadores e nenhum deles quis se meter na encrenca. Cinco meses depois, convenceu um repórter do “The New York Times” a entrar no caso. O jornal levou mais três meses para digerir o material e, em junho de 1971, surgiram os inesquecíveis Pentagon Papers. Em 2009, o soldado Bradley Manning baixou 750 mil telegramas secretos do governo americano em CDs de canções de Lady Gaga. Num só, em alguns minutos, caberiam cinco cópias dos Pentagon Papers. Ele mandou o material para o site Wikileaks e deu no que deu.

Da Gávea, Greenwald recebeu as informações mandadas por um técnico da National Security Agency que trabalhava para a Booz Allen Hamilton. Sabia-se que a NSA inaugurará em outubro uma central de dados no deserto de Utah com capacidade para armazenar dez vezes tudo o que há na internet. A denúncia de que Obama grampeia o mundo veio de Edward Snowden. Ele tem 29 anos, vivia no Havaí, foi para Hong Kong e de lá remeteu as informações. Valeu-se de Greenwald porque respeita seu trabalho no “Guardian”, jornal centenário, com uma tiragem de 200 mil exemplares e um site grátis.

Seu prestígio vem da qualidade de seus repórteres e do discernimento de seus editores. O que Greenwald fez foi buscar notícia e, graças à internet, recebeu-a, na Gávea. A internet não ameaça o jornalismo. Pelo contrário, facilita-o, desde que o repórter saiba o que deve procurar, faça-se respeitar por quem tem o que ele busca e haja nas redações o entendimento de que notícia ajuda, não atrapalha a rotina de uma edição.

As duas maiores notícias do século (“A guerra acabou” e “Kennedy está morto”) foram divulgadas contrariando as convenções jornalísticas. A rendição alemã estava embargada e o repórter que a pôs no ar foi punido. A morte do presidente foi anunciada sem que a informação fosse confirmada e, obviamente, foi desautorizada pela Casa Branca. Sacrossanta internet, a notícia sai do Havaí, passa por Hong Kong e pousa na Gávea.

*Elio Gaspari é jornalista

Fonte: http://oglobo.globo.com/opiniao/o-futuro-do-jornalismo-estava-na-gavea-8653311

segunda-feira, 10 de junho de 2013

A volta ao ar de Big Boy

Por Carlos Albuquerque - "O Globo"

Radialista, DJ, apresentador de TV e jornalista, ele tem o legado revisto no mês em que faria 70 anos, com seu acervo aberto ao público pela primeira vez na internet




Big Boy, morto em 1977: um comunicador brilhante, que influenciou toda uma geração. Arquivo

RIO - Newton Duarte era um garotão. E música era a sua maior diversão. Por causa dela, o pacato professor de geografia, que lecionava no Colégio de Aplicação da UFRJ no fim dos anos 1960, se transformou no elétrico Big Boy. Multimídia antes que o termo fosse batizado, ele foi radialista, DJ, apresentador de TV e jornalista, sempre um passinho à frente do seu tempo em cada uma dessas atividades. Falava de Led Zeppelin, tocava soul e funk, selecionava rock progressivo e os primórdios da eletrônica, e escrevia sobre tudo isso com maestria.

Morto em 1977, de infarto, aos 33 anos, após um ataque de asma, num hotel em São Paulo, ele subverte a ideia de que saudade não tem idade e reaparece agora com uma página no Facebook em sua homenagem, justamente no mês em que completaria 70 anos, fazendo jus a um de seus mais famosos bordões: “Hello crazy people, Big Boy rides again.”

Criada pela ex-mulher, a professora universitária Lúcia Duarte, e por um dos seus filhos, o produtor de televisão e também DJ Leandro Petersen, a página abre ao público, pela primeira vez, o precioso arquivo de Big Boy. Desde o primeiro dia de junho (data do seu aniversário), estão sendo colocados ali vinhetas de rádio (como as da Mundial AM, em que comandava um célebre programa com seu nome), trechos de entrevistas (com Mick Jagger, por exemplo), fotos (ao lado de estrelas como James Brown e Stevie Wonder), reproduções de suas colunas (uma delas, Top Jovem, era publicada no GLOBO) e, claro, trechos de músicas, retiradas do seu acervo de mais de 20 mil discos de vinil (entre LPs e compactos). É um material que ajuda a traçar um valioso panorama da música pop e dos sons alternativos no Brasil e no mundo nos anos 1970, sob o ponto de vista de um dos seus maiores comunicadores.

— Era uma ideia antiga que tínhamos, de abrir esse acervo, de torná-lo público — conta Lúcia. — Chegamos a fazer vários projetos, inclusive de ceder esse material para um museu, mas sempre faltava alguma coisa. E havia essa eterna dicotomia entre a coisa pública e a privada, já que se trata de algo de interesse geral, mas que também é patrimônio da família, é parte de nossas vidas. A página no Facebook acabou sendo o formato ideal para homenageá-lo, tanto pelo seu caráter de “Baixo Net” (uma brincadeira com Baixo Leblon ou Baixo Gávea), onde todo mundo acaba dando uma passada, como também pela possibilidade de interação com o público. Além do mais, acho que se estivesse vivo, o Newton estaria na internet de alguma forma. Ele adorava tecnologia e era conectado à sua maneira. Era tão acelerado e de vanguarda que o mundo em torno dele parecia lento.

De fato, desde que entrou no ar, a página de Big Boy no Facebook (chamada, justamente, de “Big Boy rides again”) tem recebido diversas contribuições, desde apaixonadas declarações de amor a ele (um fã chegou a postar uma música que fez em sua homenagem) a preciosidades a que a própria família não tinha acesso, como a reprodução da entrevista dada por ele ao repórter Joel Macedo, para o número inicial da “Rolling Stone” brasileira, em sua primeira versão, em 1972 (“Ficamos rodando de carro, do Leme ao Pontal, eu no volante, ele falando, e um gravador no meio”, descreve Macedo).

— Eu o conheci como Newton Duarte, e ele era uma figura extraordinária, carinhosa, alegre, que se descobriu através desse personagem — lembra Nelson Motta. — Aprendi muito de música com o Big Boy. Seus programas eram incríveis e sempre traziam novidades, que ele conseguia através de um superesquema com aeromoças e amigos que traziam discos do exterior. Depois, quando ele começou a ter um quadro no jornal “Hoje”, na TV Globo, onde eu trabalhava, nos tornamos ainda mais amigos.

Na página do Facebook estão também capas e informações dos quatro discos que assinou como DJ, entre 1970 e 1974, dos tempos em que comandava os concorridos Bailes da Pesada, boa parte deles ao lado do parceiro, Ademir Lemos, inicialmente no Canecão e posteriormente em vários ginásios de clubes na Zona Norte. Um deles, “Baile da Cueca” de 1972, trazia a própria peça íntima encartada no disco.

— Ele fazia de forma brilhante o dever de todo DJ, que é apresentar novidades — conta Fernanda Abreu, que incluiu uma fala de Big Boy na abertura de “Baile da pesada” e o citou na letra da música, do disco “Entidade urbana”, de 2000. — Tocou rock, quando ainda era um som maldito, e também soul e funk, abrindo espaço para o som negro nos bailes. Foi uma figura revolucionária, um comunicador brilhante, que influenciou toda uma geração.

Curiosamente, uma das mais cultuadas heranças de Big Boy — que chegou a brincar de ator, em um programa de Chico Anysio, em 1972, como Índio Jerônimo — foi feita em silêncio. Nos primórdios da FM no país, ele assinou a programação da rádio Eldo Pop, do Sistema Globo de Rádio. Como o formato ainda estava em fase de testes, teve total liberdade para usar o espaço e criar uma estação experimental, em 1973, sem vinhetas ou locutores. Na Eldo Pop, colocou no ar grupos de rock dos mais variados estilos, principalmente do chamado som progressivo, abrindo espaço também para pioneiros da eletrônica, como Kraftwerk e Tangerine Dream. Como as músicas não eram identificadas, até hoje tem gente buscando os nomes das sequências em salas de discussão on-line.

— Tenho plena convicção de que, se ele não tivesse partido tão cedo, a música no Brasil teria uma outra dimensão — afirma o radialista, DJ e jornalista Maurício Valladares, discípulo assumido de Big Boy. — Com aquele ar de Chacrinha e a quantidade de informação que possuía, ele deixou conquistas que só hoje estão sendo entendidas.


sexta-feira, 31 de maio de 2013

Campanha veste sem-teto com roupas Abercrombie em protesto contra a grife

Por PRISCILA JORDÃO - COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Após a americana Abercrombie & Fitch ter se tornado alvo de críticas por decidir associar a marca apenas a pessoas consideradas bonitas, uma campanha na internet propõe vestir moradores de rua com artigos da grife.

Apelidada de "Abercrombie Popular", a campanha foi criada pelo designer paulistano Isaias Zatz, 21, e possui uma página no Facebook e um Tumblr (blog para publicação de fotos) que mostram imagens de moradores de rua usando roupas da marca obtidas por meio de doações.

A iniciativa surgiu depois de Robin Lewis, coautor do livro "The Rules of Retail", ter causado polêmica ao afirmar ao site "Business Insider" que a empresa optou por não vender roupas femininas nos tamanhos XL e XXL (XG e XXG no Brasil) para que a marca seja ligada apenas a pessoas "magras e bonitas".

Sem-teto vestem roupas da Abercrombie


 Em protesto contra declarações do presidente da americana Abercrombie, uma campanha na internet propõe doar roupas da marca a moradores de rua
  A acusação ganhou força com a divulgação de declarações feitas pelo presidente da empresa, Mike Jeffries, em 2006. "Em toda escola existem as crianças legais e populares e as crianças 'não tão legais'. Nós vamos atrás das legais", afirmou.

"Muitas pessoas não servem [em nossas roupas] e não devem servir. Somos excludentes? Absolutamente."

Segundo Lewis, a Abercrombie manteve os tamanhos grandes para homens somente para atrair esportistas fortes para as suas lojas.

Zatz, criador da campanha contra a grife no Brasil, afirmou que a ideia de agir contra a Abercrombie não é nova. "Nunca fui fã da marca por ela ser um símbolo social, com só pessoas ricas usando", disse.

Com a repercussão das críticas à empresa, o designer decidiu doar camisetas da grife que ganhou no Natal para moradores de rua e postar as fotos deles usando os artigos em um Tumblr, criado neste fim de semana. Passou, então, a receber doações e fotos de internautas e criou uma página no Facebook.

Uma iniciativa semelhante contra a Abercrombie & Fitch ganha força nos EUA.

Na segunda-feira, o internauta Greg Karber postou no YouTube um vídeo no qual doa roupas da grife a moradores de rua e convoca americanos para o movimento "Fitch the Homeless" (vista os sem-teto com a Fitch, em tradução livre).

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2013/05/1279465-campanha-veste-sem-teto-com-a-marca-abercrombie.shtml




terça-feira, 28 de maio de 2013

Um plus a mais

LUIS FERNANDO VERÍSSIMO - O Estado de S.Paulo


Passei por uma loja que vendia roupa "plus size" para mulheres. Levei algum tempo para entender o que era "plus size". "Plus", em inglês, é mais. "Size é tamanho. Mais tamanho? Claro: era uma loja de roupas para mulheres grandes e gordas, ou com mais tamanho do que o normal. Só não entendi isto logo porque a loja não ficava em Miami ou em Nova York, ficava no Brasil. Não sei como seria uma versão em português do que ela oferecia, mas o "plus size" presumia 1) que a mulher grande ou gorda saberia que a loja era para ela, 2) que a mulher grande ou gorda se sentiria melhor sendo uma "plus size" do que o seu equivalente em brasileiro, e 3) que ninguém mais estranha que o inglês já seja quase a nossa primeira língua, pelo menos no comércio.

A invasão de americanismos no nosso cotidiano hoje é epidêmica, e chegou a uma espécie de ápice do ridículo quando "entrega" virou "delivery". Perdemos o último resquício de escrúpulo nacional quando a nossa pizza, em vez de entregue, passou a ser "delivered" na porta. Isto não é xenofobia nem anticolonialismo cultural americano primário, nem eu acho que se deva combater a invasão com legislação, como já foi proposto. O inglês, para muita gente, é a língua da modernidade. Todos queremos ser modernos e, nem que seja só na imaginação, um pouco americanos. E nada contra quem prefere ser "plus" a ser mais e ter "size" em vez de altura ou largura. Só é triste acompanhar esta entrega - ou devo dizer "delivery"? - de identidade de um país com vergonha da própria língua.

Papo vovô. Engana-se quem acha que os avós vivem num paraíso enquanto os pais padecem com as crianças. Ser avô também requer prática e habilidade e, acima de tudo, versatilidade. Ainda mais quando a neta tem uma imaginação ativa, como a Lucinda, e vive mudando a distribuição de papéis nos seus faz de contas. Você um minuto é príncipe e no outro é pai, no outro é caçador e no outro é monstro, e pode passar rapidamente de rei a cachorro. O que exige do avô um talento histriônico fora do comum, além de preparo físico. Uma das minhas encarnações é a de marido. Já nos casamos várias vezes, e como marido tenho um direito que nenhum outro personagem tem, nem o cachorro: o de ser chamado de "meu amor". É o meu papel preferido.

Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,um-plus-a-mais-,1034748,0.htm

terça-feira, 21 de maio de 2013

Viver com menos

Por Felipe Sil - "O Globo"


Jovens da classe média reduzem consumo ao essencial por estilo, e não por necessidade. Fenômeno minimalista começa a ser estudado em universidades e difundido na internet


Zappa diz que ter menos objetos é como subtrair problemas Michel Filho / Michel Filho

RIO - A fotógrafa catarinense Claudia Regina, de 24 anos, vive num apartamento de 40 metros quadrados em Copacabana, na Zona Sul do Rio, sem liquidificador, micro-ondas e torradeira. Simples até na dispensa do sobrenome, ela também não tem carro. Dentro de casa, apenas uma cama, poucos armários e um frigobar. Os cabelos são mantidos praticamente raspados, o que elimina a necessidade do uso regular de shampoo e condicionador, assim como o de pente ou escova. O publicitário paulista Michell Zappa, de 28 anos, mora nos Jardins, bairro de classe alta em São Paulo, num apartamento do mesmo tamanho do de Claudia, mas sem TV a cabo, DVD ou Blu-Ray. Até virtualmente ele cortou supérfluos. Tudo que ouve é em serviço de streaming — o que significa que não precisa baixar músicas —, e os livros estão armazenados num Kindle.

Não foi a ruína financeira que levou Claudia e Zappa a aderir à redução do estilo de vida ao essencial. Eles não se conhecem, mas comungam dos mesmos ideais quando o assunto é a maneira de consumir. Mais do que isso, fazem parte de um fenômeno social que já começa a ser debatido. É o que faz o pesquisador da PUC do Paraná Jelson Oliveira. Ele está concluindo o livro “Simplicidade”, que será lançado até o final do ano. Entre os temas abordados está um dos aspectos da questão que Oliveira mais gosta de ressaltar: o “culto de viver com menos” não tem nada a ver com pobreza:

— Adotar a ideia da simplicidade é estar disposto a abrir mão do excesso de bens de consumo. O aumento da procura por outra forma de viver é um sintoma de cansaço com a uma sociedade altamente consumista.

Criados na cultura digital, os adeptos da simplicidade voluntária subtraem móveis, roupas, sapatos, livros, qualquer bem de consumo considerado supérfluo de suas vidas. Ainda que seja um fenômeno social contemporâneo sem líderes nem regras, alguns usam o espaço virtual para divulgar suas ideias.

O escritor carioca Alex Castro, de 39 anos, que cresceu num apartamento de 600 metros quadrados na Barra da Tijuca, aderiu ao movimento e usa seu site pessoal para propagar suas ideias sobre a redução do estilo de vida ao essencial. A base de tudo é o minimalismo — movimento cultural do século passado que faz uso de poucos elementos fundamentais como base de expressão.

— Antes eu atrelava os momentos felizes a objetos inanimados. Um dia, fiquei irritado porque um amigo usou minha caneca. Decidi que não queria ser essa pessoa. Descobri que jogar fora os objetos não significa jogar fora as emoções. Passei a viver uma vida sem rastro, aumentando a prática do desapego.

Castro reduziu seus pertences de tal forma que garante caberem numa caixa. Poucas roupas e sapatos, assim como utensílios domésticos. Ele só não abre mão de investir num bom laptop, Kindle, celular, câmara digital e cachimbos. Todo o resto, teoriza, é supérfluo. Deixar tudo para trás, diz ele, é um exercício constante, que incluiu até livros caçados em sebos durante anos:

— Tenho menos objetos e mais tempo livre para mim. Não posso imaginar troca mais sensata.

A sensação de liberdade por se livrar da necessidade de ter dinheiro para consumir cada vez mais é repetida por todos os seguidores de uma rotina mais simples. O relatório “Estado do Mundo — 2010", da ONG ambientalista WorldWatch Institute, mostrou que apenas um terço da população mundial consome mais do que a Terra é capaz de repor. Os outros dois terços da população do mundo sequer conseguem ir às compras, já que apenas garantem sua própria sobrevivência.

Filósofos e escritores

A vida de pesquisador de tendências levou Michell Zappa a descobrir os benefícios do desapego. Hoje, é praticamente um nômade. Desde os 15 anos, quando saiu de São Paulo para morar em Estocolmo, na Suécia, troca de endereço periodicamente. Nos últimos sete anos morou em Amsterdã, Nova York e São Paulo. Cada mudança, lembra, exigia o exercício do desapego. Até que decidiu focar apenas em alguns móveis e objetos de arte, que ficam espalhados nas casas de familiares e amigos. O resto é “descartável”.

— Hoje tenho um apartamento pequeno, que comporta apenas um sofá, uma estante, um baú e uma mesa com duas cadeiras.

A simplicidade ultrapassa a adoção de uma atitude menos consumista, mas não significa um rompimento total com a sociedade de consumo. Implica fundamentalmente em trocar o supérfluo pelo essencial.

O desejo de ser feliz com menos é mais antigo do que se imagina. Na antiga Grécia, o filósofo Diógenes de Sínope condenava os luxos da civilização. Diógenes, o Cínico, como era conhecido, teria vivido pelas ruas de Atenas e sua única posse era uma cuia. E até dessa se livrou ao ver um menino usando as mãos em forma de concha para beber água. Mas Diógenes, vale esclarecer, achava que pobreza era virtude. Seus discípulos e o também filósofo Antístenes são considerados os primeiros a defender a ideia de que bens e glórias podem se tornar fontes de infelicidade e prisões do espírito.

No século XVIII, o pensador Jean-Jacques Rousseau pregava uma vida bucólica, em contato com a natureza, enquanto o francês Pierre-Joseph Proudhon, no século seguinte, chegou a criar substitutos do dinheiro, como a troca de produtos de acordo com o tempo de trabalho. Escritores como Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau também seguiram por caminhos semelhantes. No mundo contemporâneo, paradoxalmente, um dos exemplos de gente que adotou estilo de vida minimalista foi também um dos maiores criadores de símbolos de consumo. Steve Jobs, criador da Apple, marca-fetiche entre os adeptos do “menos é mais”, era minimalista em sua vida pessoal. Quando solteiro, vivia num ambiente decorado apenas com uma foto do físico Albert Einstein, uma luminária, uma cadeira e uma cama.

— A ideia de simplicidade volta aos debates com frequência. Nos anos 1960, por exemplo, surgiram numerosos movimentos que defendiam uma vida mais comunitária e menos individualista. O que há hoje é uma mercantilização do mundo. Isso estressa as pessoas, e a situação que leva a isso não mudou com o passar das décadas. Uma sociedade extremamente voltada para o consumo apenas complica. Não simplifica. E ainda causa impactos enormes no meio ambiente — argumenta Dulce Critelli, terapeuta e professora de filosofia da PUC de São Paulo.

Para ela, três fatores levam ao crescimento da tendência minimalista pelo mundo. Uma delas é o conceito de slow food que, ao criticar os efeitos padronizantes da fast food, reforçou a crítica ao ritmo da vida atual. O segundo é a crise econômica, que diminuiu o poder aquisitivo das pessoas e as fez repensar seus gastos. E, por fim, os movimentos de preservação ambiental, que não cansam de chamar a atenção, por meio de relatórios e documentos, para o excesso de consumo.

Consumo consciente

Pesquisa do Instituto Akatu, ONG que se dedica à conscientização da sociedade para o consumo consciente, mostra que o brasileiro não associa o sentimento de felicidade e de bem-estar à posse de bens. Das 800 pessoas entrevistadas, 66% apontaram a saúde, tanto a própria como a de parentes e de amigos, como um dos fatores para se sentirem satisfeitas. Apenas 33% indicaram aspectos relacionados ao consumo como condição primordial para o bem-estar. No quesito afetividade, a opção “passar tempo com as pessoas” levou nota 8,3; e “comprar presentes” conquistou 2,6 pontos.

Para Hélio Mattar, diretor-presidente do Akatu, existe uma tensão na sociedade de consumo que leva as pessoas a viverem um verdadeiro estresse cotidiano. Trabalha-se mais para se consumir mais. Um dos maiores dramas, para ele, é na economia. O excesso de desejo gera dívidas. Só que a vontade de comprar ainda mais não cessa, o que acaba alimentando um círculo vicioso que deixa a população numa situação vulnerável.

Segundo o Banco Central, cerca de 45% da renda anual da população estão comprometidos com dívidas. Por mês, o brasileiro gasta, em média, um quarto do salário para pagar o que deve. Os americanos, tradicionais consumistas, comprometem 16%. A consequência do aperto no orçamento é a dificuldade de manter em dia os compromissos financeiros.

Mattar lança mão de um estudo do WorldWatch Institute para discutir o tema:

— Aproximadamente 16% dos países mais ricos do mundo são responsáveis por 78% do consumo total. Isso já ultrapassa o que o planeta é capaz de repor. Agora pensemos na certeza de que o número de pessoas que compram em alta intensidade irá aumentar nas próximas décadas. O planeta aguenta?

Uma solução é o desapego a pertences físicos. Solução essa que ganhou um aliado no mundo virtual. Acervos de fotos, livros, revistas, papéis, DVDs e documentos, que costumam encher armários e gavetas, podem ser guardados virtualmente. Nos Estados Unidos, a venda de livros tradicionais tem caído todos os anos, em contraste com o crescimento do comércio de e-books.

O analista de mídias sociais Ian Black, de 32 anos, não tem tocador de DVD e diz não frequentar locadoras de vídeo há quatro anos. Nos últimos dez anos acumulou um acervo considerável de música e entretenimento digital. Tem mais de 20 mil faixas armazenadas. Possui também aproximadamente 400 filmes baixados. Para ele, um jeito torto de ser ecologicamente correto.

— Consumir menos também significa gastar menos recursos naturais. Mas há um lado de conveniência mesmo. Ter uma estante com centenas de CDs significa que você precisa investir um bom tempo organizando, limpando e ainda tirando da embalagem para colocar em um aparelho específico. Também vou, aos poucos, me livrando dos livros. É o que considero mais absurdo. Dificilmente são relidos e depois só servem como decoração e como peso desconfortável na mudança.

Black, que mora em São Paulo, diz que tenta aplicar o mesmo conceito para roupas. Cada vez mais se apega a peças lisas e fáceis de combinar, de maneira que não tomem tempo e espaço maiores do que o necessário:

— Não quero mais gastar tempo com detalhes supérfluos no meu dia a dia. Também não quero me matar de trabalhar para manter um estilo de vida mais extravagante. Recentemente, também mudei de escritório. Eu e minha equipe abandonamos uma casa alugada de 200 metros quadrados, na qual tínhamos que ter uma pessoa contratada exclusivamente para mantê-la funcionando. Optamos por um espaço mais central e menor que nos permita um contato maior com outros empreendedores. Nosso custo mensal passou de R$ 15 mil para R$ 3 mil.

A vida editada pode fazer diferença para casais como o ilustrador Bruno Algarve, de 30 anos, e a designer Daisy Biagini, de 29 anos. Ambos são paulistas. O estalo começou da parte de Algarve, quando, em 2005, percebeu que não conhecia mais a voz dos clientes. Todo o trabalho era desenvolvido através de e-mails. Viu, então, que não precisaria se prender a São Paulo para trabalhar.

Algarve convenceu Daisy a venderem tudo que tinham e viajar. O que sobrou foi colocado em dez caixas de papelão e armazenado em um quartinho na casa dos pais dela. Agora são apenas duas mochilas para cada um. Uma para roupas e outra para o escritório. Na do trabalho de Algarve ficam laptop, câmera fotográfica e pen tablet, espécie de prancheta digital muito usada por ilustradores. O valor dos três itens não ultrapassa R$ 3 mil.

— E dessa maneira já viajamos para Uruguai, Chile, Peru e Bolívia. Em cada lugar, ficamos em apartamentos ou pousadas. Trabalhávamos onde estivéssemos. De vez em quando, ficamos em São Paulo, mas em casas de amigos ou da família. Até adquirimos um carro para ter mais mobilidade. Mas lá vão apenas as quatro mochilas. A prioridade, na verdade, é viajar. O minimalismo acabou sendo uma consequência que nos ensinou a nos livrar de objetos e praticar o desapego — conta Bruno.

Radicalismo

Poucos pessoas, no entanto, conseguem ser tão radicais quanto o economista britânico Mark Boyle. Em 2008, exatamente no mesmo dia das notícias sobre a quebra dos bancos envolvidos em negócios no mercado de hipotecas, ele resolveu renunciar ao dinheiro. Era dono de duas empresas de comida orgânica, em Londres. Boyle vendeu tudo que tinha e hoje, cinco anos depois, vive em um velho trailer no Sudoeste da Inglaterra.

Hoje, escreve artigos para o jornal “The Guardian” sobre sua atual rotina. Foi logo batizado pelo veículo como “o homem sem dinheiro”. Virou celebridade e chegou a publicar um livro, chamado “O homem sem grana” (Ed. Best-Seller), já lançado no Brasil. Também possui um site pessoal na internet e dá palestras em que conclama as pessoas a renunciar ao dinheiro.

— Todos nós conhecemos os benefícios do dinheiro. Somos informados disso constantemente desde o momento em que nascemos. Na realidade, porém, a experiência de 99% da população me diz que nada disso está perto de ser verdade. O pior de tudo é que, quando olhamos para os problemas do mundo, todos sabemos que esse tipo de cultura em que estamos envolvidos é o principal responsável por grandes problemas ecológicos, sociais e pessoais — argumenta.

A fotógrafa Claudia não chegou ao extremo de Boyle, embora admita que raspar os cabelos foi uma forma de radicalização. Desde que trocou Curitiba pelo Rio — depois de largar a vida de empresária, ela tinha um escritório de webdesign na capital catarinense, e o marido —, ela passou a dar palestras sobre a vida minimalista:

— Minhas escolhas têm a ver com sustentabilidade e economia. Mas é também um ato político. Eu economizo, gasto menos recursos do planeta e me posiciono contra uma sociedade consumista.

Um dos primeiros ativistas desse estilo de vida, o americano Duane Elgin, autor do livro “Simplicidade voluntária”, previa na sua obra, de 1981, a necessidade de mudança. Ele deixava claro que descomplicar não significava fazer voto de pobreza. Mas reduzir a demanda por elementos externos que proporcionam uma dose limitada de satisfação e sensação de bem-estar.

— Desde então, muita coisa mudou. Lembro que nos anos 1970, nas minhas primeiras palestras, eu era visto como um cara excêntrico. Agora sou apresentado como um exemplo positivo de que é possível mudar. O tema passou a ser visto com menos complacência e mais urgência. Naquela época, havia poucos debates sobre mudanças climáticas, problemas de energia e água... Agora, quanto mais perto observamos o planeta, mais vemos que ultrapassamos a capacidade do mundo em assegurar nosso nível extremado de consumo — defende Elgin, em entrevista por email.

Fonte: http://oglobo.globo.com/amanha/viver-com-menos-8451460