segunda-feira, 22 de julho de 2013

A caixinha dos trens e dos metrôs

A Siemens resolveu colaborar com o governo e é possível que se conheça o mapa de roubalheiras de gente graúda

ARTIGO - *ELIO GASPARI - "O Globo" - 17/07/2013
 
Desde 1993, quando foi aberta a caixinha das empreiteiras com deputados da Comissão do Orçamento, não aparecia notícia tão boa para expor o metabolismo das roubalheiras nacionais. Os repórteres Catia Seabra, Julianna Sofia e Dimmi Amora revelaram que a Siemens alemã, a maior empresa de equipamentos eletrônicos da Europa, colaborará com o governo para expor a formação de cartéis que viciam concorrências para compra de equipamentos no Brasil. Ela tem 360 mil empregados em cerca de 190 países. Foram negócios de bilhões de dólares, com maracutaias das quais participava. Desta vez o Ministério Público poderá furar a poderosa blindagem de um cartel invicto.
Há sete anos o deputado Osmar Serraglio, relator da CPI dos Correios, informou que havia “denúncias que precisam ser aprofundadas”. Uma delas tratava de um contubérnio entre a empresa francesa Alstom e a Siemens para fraudar uma concorrência de R$ 78 milhões. Na denúncia havia nomes, datas e locais. Deu em nada.
Tudo bem, teria sido esperneio de concorrente. Afinal, com 110 mil funcionários pelo mundo afora, o conglomerado da Alstom era uma das maiores empresas do mercado. Ela e a Siemens foram grandes fornecedoras de máquinas aos governos brasileiros, tanto o federal quanto os de diversos estados.
Em 2008 o “The Wall Street Journal” revelou que a Alstom estava sendo investigada na França e na Suíça por ter pago propinas globalizadas. Na lista estava o Brasil, honrado com jabaculês no metrô de São Paulo (US$ 6,8 milhões em mimos) e na hidrelétrica de Itá (propina de US$ 30 milhões). Num contrato com o Metrô paulista, a Alstom e a Siemens foram parceiras.
Autoridades municipais, estaduais e federais prometeram rigorosas investigações. Um ex-diretor da área de energia da Alstom já fora preso. O assessor de um senador fora grampeado pedindo dinheiro num contrato da EletroNorte. Se isso fosse pouco, o Ministério Público suíço tinha nomes, endereços, RGs e números de contas. Lá, um diretor da empresa foi para a cadeia. No Brasil, acharam-se até comprovantes de depósitos. Mark Pieth, presidente do Grupo Anticorrupção da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, OCDE, contou que “em 2005, no Estado de São Paulo, pessoas que eram responsáveis pela compra de equipamentos não pediram suborno para eles, mas sugeriram que a empresa fizesse ‘pagamento ou presente político’, para a caixa de partido”. O estado de São Paulo é governado pelo PSDB desde 1995 e, até 2008, firmou 139 contratos com a Alstom no valor de mais de R$ 5 bilhões. Entre 2003 e 2008, o governo de Lula contratou R$ 1,2 bilhão com a empresa. Foram vãs todas as tentativas de criação de uma CPI em São Paulo. A cada blindagem, contudo, correspondia mais uma revelação. Chegou-se a um ex-presidente das Centrais Elétricas de São Paulo, CESP, que reconheceu ter recebido, na Suíça, US$ 1,4 milhão, mas, segundo ele, tratava-se apenas de uma consultoria. Já são cerca de vinte os processos que correm no MP sobre os negócios da Alstom em São Paulo.
Quando vozes mais altas se alevantam, as coisas andam devagar. A decisão da Siemens, consequência dos novos padrões de conduta de grandes empresas, poderá iluminar esse porão. Se nem isso adiantar, a situação está pior do que se pensa.

*Elio Gaspari é jornalista

 

Papel das hidrovias no Brasil é desprezado

"O Globo" - 17/07/2013

Por falta de integração dos diferentes sistemas de transportes no país, o caminhão acaba sendo mais competitivo que todos os outros modais

EDITORIAL

São conhecidas as comparações que mostram as equivalências entre diferentes modais de transportes. Um trem chega a carregar o mesmo que mais de duas centenas de caminhões e um navio de cabotagem é capaz de substituir mais de 1.200 veículos. A racionalização do sistema de transporte tenderia, então, para uma maior utilização de ferrovias e navegação marítima e fluvial, mas isso não acontece por um fator surpreendente: o modal rodoviário quase sempre é mais competitivo.

Isso porque o caminhão tem mais flexibilidade, e acaba sendo mais ágil, pois permite a entrega porta a porta. As ferrovias brasileiras têm traçado antigo, e a navegação convive com uma burocracia infernal nos portos, até mesmo nos fluviais.

Mas, embora a legislação brasileira não estimule a integração, ela tem ocorrido, na prática, no caso dos granéis, por exemplo. Caminhões fazem o transbordo de grãos, minérios e combustíveis para ferrovias, que, por sua vez chegam a portos fluviais e marítimos, onde a carga é embarcada (ou desembarcada).

Nesta intermodalidade já existem algumas iniciativas de inclusão de hidrovias. Pelo tamanho dos rios brasileiros, elas deveriam ser mais presentes no sistema de transportes. Barcos carregados de soja, levada por caminhões desde o Norte de Mato Grosso, descem o Rio Madeira, a partir de Porto Velho, até o Solimões, no estado do Amazonas, e de lá embarcam em grandes navios graneleiros. A hidrovia Tietê-Paraná, em São Paulo, enfim ganhará mais importância com as barcaças que transportarão etanol ou celulose. Mas o que dizer das demais? O rio Tocantins já poderia ter uma boa hidrovia, se as hidrelétricas construídas ao longo do seu curso contassem com eclusas (por investimento público, ou privado, sob regime de concessão). O Rio Tapajós também é citado como uma hidrovia natural.

É claro que nem sempre essas hidrovias atravessam zonas de produção agropecuária ou industrial. Mas em vários pontos elas podem se integrar aos outros modais de transporte.

Infelizmente, no planejamento recente do sistema de transportes (que prevê a construção de novas ferrovias e terminais portuários) não se cogitou das hidrovias. No passado, havia objeções de ambientalistas a essas “estradas” fluviais devido à necessidade de dragagem para mantê-las navegáveis durante grande parte do ano. Em vários casos, já existem soluções técnicas que podem minimizar esse impacto no meio ambiente.

Ao menos dentro desse quadro negativo, há uma boa notícia. São Paulo se prepara para ter uma primeira hidrovia metropolitana, de mais de 50 quilômetros, nos rios Tietê e Pinheiros para transporte de pequenas cargas, especialmente resíduos e rejeitos. Hidrovias metropolitanas são comuns na Europa (as do Sena, na França, e do Tâmisa, na Inglaterra, são as mais conhecidas). É um exemplo que o Brasil deveria seguir.
 
 

O valor do jornalismo profissional

Opinião - Época - 22/07/2013

A reportagem publicada por ÉPOCA na última edição (790) que mostrava suspeitas de fraude em duas concorrências de R$ 1,2 bilhão promovidas pelo governo do Rio de Janeiro para a contratação de empreiteiras teve efeitos imediatos. Dois dias depois de a revista ter chegado às bancas, a Secretaria de Estado do Ambiente tratou de revogar as licitações, ainda que sob queixumes do secretário Carlos Mine. Um dos contratos visa à recuperação ambiental das lagoas da Barra, um dos compromissos olímpicos do governo do Rio. O outro destina-se a conter enchentes no noroeste do Estado, em municípios que vêm sendo castigados por desastres naturais provocados por chuvas.

Os indícios de conluio e formação de cartel na concorrência apresentados pela reportagem são veementes. Depois de ter sido informada de um arranjo para que o consórcio formado pelas empreiteiras OAS, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão ganhasse as obras de recuperação ambiental das lagoas, ÉPOCA publicou um anúncio cifrado nos classificados de um jornal do Rio, em que antecipou o resultado da licitação. A reportagem mostrou ainda que não houve uma verdadeira competição para reduzir o custo de execução das obras, como esperado de uma concorrência pública.

Diante das suspeitas e da importância dos projetos para a população do Rio de Janeiro, a revogação das concorrências foi correta. Mas o significado da decisão não se esgota aí. Ela mostra a importância do jornalismo profissional, que segue critérios rigorosos de investigação e publicação das notícias, como um verdadeiro fiscal do poder. No momento em que as instituições são desafiadas por manifestantes o jornalismo profissional de qualidade, com base no interesse público, se inscreve entre aqueles valores permanentes de que uma sociedade democrática não pode prescindir.

Fonte: Revista Época, 22/07/2013, pág.10 - OPINIÃO

terça-feira, 2 de julho de 2013

‘Uma consciência surgiu. Seus frutos virão a longo prazo’

André Miranda entrevista Pierre Lévy - "O GLOBO"

Filósofo francês, uma das maiores autoridades do mundo nos estudos da cibercultura, fala sobre mobilização em redes sociais


Para Pierre Lévy, é impossível controlar a mídia social

RIO - A resposta ao pedido de entrevista é direta: “O único jeito é via Twitter”, disse o filósofo francês Pierre Lévy, uma das maiores autoridades do mundo nos estudos da cibercultura. E assim foi feito. Lévy conversou com O GLOBO na tarde de segunda, via Twitter, sobre os protestos que vêm ocorrendo no Brasil nas últimas semanas e que surgiram das redes sociais.

Nos últimos anos, muitos protestos emergiram da internet para as ruas. Como o senhor os compararia com manifestações do passado, como Maio de 1968?

Há uma nova geração de pessoas bem educadas, trabalhadores com conhecimento, usando a internet e que querem suas vozes ouvidas. A identificação com 68 está no fenômeno geracional e na revolução cultural. A diferença é que não são as mesmas ideologias.

Mas qual é a nova ideologia? No Brasil, críticos falam da dificuldade em identificar uma ideologia única nas ruas.

Uma comunicação sem fronteiras, não controlada pela mídia. Uma identidade em rede. Mais inteligência coletiva e transparência. Outro aspecto dessa nova ideologia é o “desenvolvimento humano”: educação, saúde, direitos humanos etc.

E qual seria a solução? Como os governos devem lidar com os protestos?

Lutar com mais força contra a corrupção, ser mais transparente, investir mais em saúde, educação e infraestrutura. Porém, a “solução” não está apenas nas mãos dos governos. Há uma mudança cultural e social “autônoma” em jogo.

No Brasil, um dos problemas é que não há líderes para dialogar. Qual seria a melhor forma de se comunicar com movimentos sem lideranças?

A falta de líderes é um sinal de uma nova maneira de coordenar, em rede. Talvez nós não necessitemos de um líder. Você não deve esperar resultados diretos e imediatos a partir dos protestos. Nem mudanças políticas importantes. O que é importante é uma nova consciência, um choque cultural que terá efeitos a longo prazo na sociedade brasileira.

E as instituições? Elas não são mais necessárias? É possível ter democracia sem instituições?

É claro que precisamos de instituições. A democracia é uma instituição. Mas talvez uma nova Constituição seja uma coisa boa. Porém, sua discussão deve ser ainda mais importante do que o resultado. A revolta brasileira está acima de qualquer evento emocional, social e cultural. É o experimento de uma nova forma de comunicação.

Então, o senhor vê os protestos como o início de um tipo de revolução?

Sim, é claro. Ultrapassou-se uma espécie de limite. Uma consciência surgiu. Mas seus frutos virão a longo prazo.

O que separa a democracia nas comunicações da anarquia? Pode-se desconfiar do que é publicado na mídia, mas o que aparece nas redes sociais é ainda menos confiável.

Você não confia na mídia em geral, você confia em pessoas ou em instituições organizadas. Comunicação autônoma significa que sou eu que decido em quem confiar, e ninguém mais. Eu consigo distinguir a honestidade da manipulação, a opacidade da transparência. Esse é o ponto da nova comunicação na mídia social.

O senhor teme que os governos tentem controlar as redes sociais por causa de protestos como os que ocorrem no Brasil e na Turquia?

Eu não temo nada. É normal que qualquer força social e política tente tirar vantagem da mídia social. Mas é impossível “controlar” a mídia social como se faz com a mídia tradicional. Você só pode “tentar” influenciar tendências de opiniões.

E e o risco de regimes ou ideias totalitaristas ganharem força por conta dos protestos, como já ocorreu no passado na América Latina?

Isso é pouco provável no Brasil, por conta de sua alta taxa de pessoas com educação. A chave é, como sempre, manter a liberdade de expressão, como ela é garantida pela lei. Não é preciso ter essa paranoia com o fascismo.

Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/pierre-levy-comenta-os-protestos-no-brasil-uma-consciencia-surgiu-seus-frutos-virao-longo-prazo-8809714