quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Me engana que eu gosto

Elio Gaspari, O Globo


David Miranda, brasileiro preso e interrogado pela polícia inglesa. Foto: O Globo

Com o conhecimento do governo americano, a polícia inglesa deteve por cerca de nove horas e interrogou no aeroporto de Heathrow o cidadão brasileiro David Miranda, que desembarcara de um voo procedente de Berlim, a caminho do Rio de Janeiro.

O chanceler Antonio Patriota disse que o episódio “não é justificável” e informou que os dois governos continuarão tratando do caso. Já o embaixador da Grã-Bretanha em Brasília foi mais preciso: o assunto “continua sendo uma questão operacional da Polícia Metropolitana de Londres”. Aleluia: Sua Majestade tem um governo que fala claro na defesa dos seus interesses.

Patriota precisa definir o que “não é justificável”, pois o embaixador inglês justificou-se. Nada de novo. Em julho de 2005 o brasileiro Jean Charles de Menezes, que vivia em Londres com todos os papéis em ordem, saiu de casa, entrou num vagão de metrô e tomou sete tiros na cabeça. A Polícia Metropolitana de Londres confundira-o com um terrorista e “lamentou o episódio”. Sua família recebeu uma indenização de cem mil libras.

Cinco anos depois, Tony Blair, o primeiro-ministro da ocasião, publicou um livro de memórias no qual lamentou o “terrível erro”, lembrando que ficou “profundamente entristecido pelos policiais que estavam agindo de boa-fé, tentando garantir a segurança do país”. Aleluia de novo. Os governantes ingleses defendem suas polícias. Já as autoridades brasileiras agem de maneira diversa: depois da morte de Jean Charles, Blair foi convidado para prestar serviços de consultoria ao Rio de Janeiro, preparando-o para as Olimpíadas.

Nessa época o governo inglês tentava criar, nos aeroportos de Pindorama, barreiras para viajantes brasileiros. Milhares de nativos eram deportados ao descer em aeroportos europeus. Uma pesquisadora da Universidade de São Paulo foi recambiada de Madri enquanto estava a caminho de Lisboa. Só depois de alguma gritaria o Itamaraty adotou um critério de reciprocidade, devolvendo espanhóis. Veio a crise e hoje é a Espanha que manda gente para o Brasil, sempre bem recebida.

Em julho o doutor Patriota repudiou o procedimento dos governos de Portugal, Espanha, França e Itália, que negaram direito de sobrevoo ao avião do presidente Evo Morales porque se supunha que tinha a bordo o americano Edward Snowden. Deu em quê? Detiveram o companheiro do jornalista americano que divulgou os documentos secretos coletados pelo ex-funcionário da CIA.

Se governos da Europa e dos Estados Unidos acreditam que suas leis especiais justificam-se porque o combate ao terrorismo é um conflito mundial, o receituário da Guerra Fria poderia ser ressuscitado. O governo brasileiro conhece as identidades dos funcionários ingleses que trabalham para o serviço de informações e vivem aqui, sob o guarda-chuva diplomático. Basta pedir que um deles retorne ao seu país, o que não chega a ser uma punição pessoal.

Seria apenas um gesto capaz de materializar o desagrado do governo, como fez a rainha Vitoria com o ditador boliviano Melgarejo. Ele amarrara o embaixador inglês a uma mula, e a soberana mandou bombardear La Paz. Ao saber que a cidade ficava fora do alcance de seus canhões, riscou a Bolívia de seu mapa e declarou que ela não existia mais.

Elio Gaspari é jornalista.

Fonte: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2013/08/21/me-engana-que-eu-gosto-por-elio-gaspari-507665.asp




Tentando entender

Por Zuenir Ventura - "O Globo"

O ‘mídia ativismo’ que reivindicam, ou seja, o direito à parcialidade e ao engajamento, já era moda nos anos 50

A vontade de entender o que está acontecendo no país desde as passeatas de junho tem se manifestado através de artigos e ensaios, mas também por meio de palestras e mesas-redondas. Só esta semana houve dois encontros: um na segunda-feira à noite como parte do projeto OsteRio e outro ontem de manhã na Casa do Saber. Como tenho mais perguntas do que respostas sobre o momento político, assisti ao que teve como principal tema a Mídia Ninja, e participei do que tratou da mobilização jovem. No primeiro, debateu-se o papel desse coletivo de jornalistas que se destacou transmitindo ao vivo as manifestações de rua de dentro dos acontecimentos e com exclusividade, já que os repórteres da imprensa tradicional foram hostilizados e impedidos de trabalhar.
Como não disponho de espaço para resumir as muitas horas de discussões, limito-me a fornecer minhas conclusões a partir do que ouvi. A principal é que entusiastas da Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) saúdam o fenômeno como um “novo jornalismo”, ou melhor, “pós-jornalismo”, dando a impressão de que a imprensa acaba de ser inventada. No entanto, o “mídia ativismo” que reivindicam, ou seja, o direito à parcialidade e ao engajamento já era moda quando comecei na profissão nos anos 50. Deixaram de ser, e isso a meu ver foi um avanço. Também não acredito em isenção — como já dizia Goddard, a câmera ou é de direita ou de esquerda —, mas nossa obrigação é persegui-la. Não sinto saudades do tempo em que era comum o jornal pertencer a um partido, assim como não concordo que o papel da mídia seja “ativar desejo” (na terra do Ancelmo, o que ativa desejo é... deixa pra lá).
No debate de ontem, em que a maioria era formada por jovens, muitos da periferia, pude corrigir algumas impressões da véspera. Graças a uma plateia incrivelmente bem informada e aos esclarecimentos de uma garota Ninja articuladíssima na mesa, pude constatar que, para além da má vontade de parte a parte, da Ninja em relação à mídia tradicional e vice-versa, vale a pena considerar que essas práticas são ou devem ser complementares, são tecnologias convergentes e não antagônicas. Os Ninjas não inventaram o jornalismo e também não vão acabar com ele. A seu favor, porém, o fato de que, apesar dos possíveis
equívocos e da inocente presunção, eles tiveram o mérito de fazer com a imprensa o que as manifestações fizeram com a política: refletir sobre si mesma.
Um pouco como esses novos atores da cena nacional fizeram ontem com este velho jornalista — ou “pós-jornalista”?

Zuenir Ventura é jornalista


Fonte: http://oglobo.globo.com/opiniao/tentando-entender-9513694



sábado, 10 de agosto de 2013

Biscoito fino prejudica barriga tanquinho

MARCELO RUBENS PAIVA - O Estado de S.Paulo

Dá um nó na cabeça quando fecha uma publicação que assinamos. Nos sentimos como o cara que tenta comprar hoje uma fita cassete, VHS ou para máquina de escrever. Nos sentimos tão inúteis... Estamos por fora, um pária social. Não sacamos nada. O que queremos, já era. Sem contar que desprezam nosso dinheiro. Somos os zumbis de um mercado editorial sempre em movimento. Andamos como mortos-vivos, balançando os braços, em farrapos, enquanto um energético meio publicitário faz as contas, debate se valemos a pena ou se aquele outro nicho é mais dinâmico e lucrativo.

Quem viu o Jornal do Brasil encolher até virar site, o Pasquim, Opinião, Movimento, Em Tempo, Afinal, Jornal da República desaparecerem, a revista Bizz, ícone dos anos 1980, nascer, morrer, renascer, falecer, ressuscitar e sumir em definitivo em 2007, sentiu o baque. Agora, a Bravo foi cremada.

O que me deixou inconformado, pois era das poucas revistas que eu assinava, lia de cabo a rabo, me sentia compelido a ir a exposições, peças, shows ou eventos indicados. Das poucas revistas em que escritores barra jornalistas colaboravam sem discutir o cachê. E ainda se sentiam honrados pelo convite.

Na reestruturação da Editora Abril, ficaram as revistas Boa Forma, Men's Health, Women's Health, Estilo, Manequim, Máxima, Runners, Sou Mais Eu, Saúde, Vida Simples, Viva Mais, Você S/A.

Você S/A que curte saúde, tem estilo, se sente a máxima, é mais você, gosta de estar em boa forma, com o manequim enxuto, no capricho, porque quer viver mais, não ficou brava com a extinção da Bravo. Talvez nem tenha notado.

Biscoito faz mal, fino ou não. Vivemos o fim do biscoito fino. O fechamento da Bravo é a prova de que alimentar o cérebro não está mais entre as prioridades. A reestruturação da maior editora dá sinais de que o brasileiro quer viver mais sem se importar em saber menos. Se então a prioridade é a saúde, a vaidade em lua de mel com a longevidade, será que saber menos prolonga a vida? Ou será que o conhecimento até então considerado engrandecedor, como livros, teatro, exposições e filmes, são dispensáveis quando a sobrevida necessita de outro tipo de conhecimento, entrar em forma, ter saúde e controle do colesterol total e frações, glicemia, ferritina, albumina, TSH, T4L, creatina, ureia?

Nós, assinantes das revistas extintas, recebemos nesta semana pelo correio o COMUNICADO IMPORTANTE, assim mesmo, em caixa alta. "De tempos em tempos, fazemos uma análise em nosso portfólio editorial e, em algumas vezes, essa análise nos obriga a um redirecionamento", explicou o diretor de assinaturas da Abril, Fernando Costa. "Foi uma decisão difícil, acredite, sobretudo porque ela envolve você." Acredito. A Bravo era a menina dos olhos do publisher Roberto Civita, morto em maio.

O comunicado me deu uma linha direta 0800 para tratar do meu caso. Eu poderia ter de volta o dinheiro correspondente às dez edições da revista ou migrar para outra. A atendente foi tão simpática, rápida e bem-humorada, que tive a vontade de passar a tarde pedindo conselhos para outros problemas da minha vida.

De primeira, me sugeriu mudar para a Veja. Segundo ela, a Bravo seria incorporada pela Veja. Nada contra a primeira publicação em que trabalhei. Mas eu estava mal-intencionado. Ela me deu a lista de revistas para as quais eu poderia migrar. Revistas de viagem, saúde, beleza. Esperei, nada. Perguntei então encabulado se a Playboy estava nesse time. Ufa, estava. Fiquei perplexo por ela não ter me oferecido o leque de revistas masculinas. Vai ver tenho a voz de um pudico conservador. Eu poderia mudar para a revista agora sob nova gestão - do meu ex-colega Thales Guaracy, que promete reviver o tempo das grandes musas.

Mas então pensei na reação da minha mulher, da empregada, família, porteiros, hóspedes, vizinhos, do carteiro, da síndica! O fato seria comentado numa reunião de condomínio, eu poderia ser banido da área social: morador de meia-idade pervertido troca a Bravo pela Playboy, alta cultura por loiras ou morenas turbinadas, altas e mignons, em poses escandalosas e sugestivas. Vândalo condominial! Black Bloc do bloco 3.

Mudei de ideia e sugeri o dinheiro de volta, quando a atendente, de quem me arrependo de não ter pedido o telefone, para consultá-la em outras indecisões rotineiras, me sugeriu a revista Piauí. Claro, tudo a ver. O único senão: dez edições da Bravo equivaleriam a dez da Playboy, mas apenas a nove da Piauí. "A Playboy tem mulher pelada", repliquei. "O papel da Piauí é de melhor qualidade", justificou.

Fiquei contente em saber que nove Piauís valem dez Playboys. Nem tudo está perdido. No mais, pegará bem ter uma Piauí chegando em casa pelo correio. Minha mulher terá mais orgulho de mim. Minha empregada poderá fazer a faxina sem sustos. E para as visitas e hóspedes vai pegar bem ter uma pilha delas no canto da sala e outra no lavabo. Dependendo deles, teria de esconder a de Playboys. Mesmo revigorada.

O ex-editor da Bravo, meu amigo Armando Antenore, explicou numa carta sincera que a revista deu prejuízo desde quando passou para a Abril em 2004 (foi criada numa pequena editora, a D'Ávila): "Em termos comerciais, Bravo nunca gerou lucro - ao menos, não na Abril. A revista, embora contasse com o apoio da Lei Rouanet, operava no vermelho. Em bom português, dava prejuízo - ora de milhões, ora de milhares de reais".

Afirmou que a revista contava com cerca de 20 mil assinantes e 8 mil compradores em bancas. No Facebook, a publicação tinha 53.600 seguidores. Perdeu leitores com o avanço das mídias digitais num ritmo menor do que outras. Era mais caro imprimi-la, por causa de formato e papel, e tinha poucos anúncios.

"Grandes anunciantes costumam demonstrar pequeno interesse por títulos dedicados à 'alta cultura'. 'O leitor de revistas do gênero, sendo mais crítico, tende a frear os impulsos consumistas', explicam os publicitários, nem sempre com essas palavras", resumiu Antenore, que diminuiu de 114 para 98 páginas, encolheu a redação, reajustou o projeto gráfico e editorial. Em vão. Vai fazer falta.