domingo, 27 de outubro de 2013

O alvo duplo

Por Miriam Leitão - O Globo - 27/10/2013
 
Tatiana Farah é repórter experiente que não se assusta com pouca coisa. Ela estava na rodovia Raposo Tavares, a 54 quilômetros de São Paulo, ao meio-dia do sábado, 19, cobrindo a manifestação contra o uso de animais como cobaias. O primeiro tiro de borracha raspou sua cabeça. O segundo a atingiu nas costas. Depois, ela apanhou de cassetete, gritando que era repórter e estava ali a trabalho.
 
Tatiana, do GLOBO, é um dos 100 jornalistas agredidos nos últimos meses. Ainda está de licença médica, com hematomas das agressões a bala de borracha e cassetete. O caso dela foi um ataque, como os outros, totalmente desprovido de sentido.— Eu estava no acostamento e logo depois da primeira bala, que por pouco não atingiu minha cabeça ou olhos, gritei que era jornalista, várias vezes, mas nada adiantou. Eles atiravam a esmo, em todas as direções. Então um policial veio em minha direção. Ele saiu da pista e foi para o acostamento, onde eu estava. Gritei que era jornalista. Ele puxou o cassetete e me bateu — relata Tatiana.Tenho ouvido relato de repórteres nos últimos tempos e são sempre assim. A polícia ignora a identificação, ataca manifestantes indiscriminadamente. Tem usado métodos inaceitáveis. Os repórteres têm enfrentado também a hostilidade irracional e inaceitável de manifestantes. Mas há duas diferenças: o número dos repórteres atingidos pela polícia é maior; e a Polícia é paga com os nossos impostos e deveria estar treinada para situações de estresse na rua.O país inteiro parece despreparado para o que está acontecendo. As manifestações de junho mostraram o enorme descontentamento diante de vários problemas: a corrupção, a inflação, o colapso da mobilidade urbana, os serviços públicos deficientes. Foi uma dessas explosões inesperadas dos novos tempos digitais onde redes e ondas se formam de maneira rápida e caótica. Interesses difusos e a raiva contida explodem detonados às vezes por um pequeno evento, uma gota d’água. Nas democracias, cabe às instituições entender o que são esses movimentos sociais. E assim fazer avançar a democracia.Depois de junho vieram os protestos por interesses mais localizados: médicos, professores, protetores de animais. Cada um quis passar sua mensagem. Na maioria das vezes as manifestações começam pacíficas e, a partir de um momento, a violência da Polícia e de grupos de pessoas com o rosto coberto, atacando policiais ou o patrimônio, transformam as ruas em praças de guerras. Toda violência de manifestante tem que ser contida, mas a Polícia tem errado mais do que acertado. Em vez de contê-los, escala a agressão; em vez de isolá-los, ataca a esmo. E não há mais dúvida: mira a imprensa deliberadamente.O país está falhando por não entender o momento. Todos temos dever de casa para fazer. Os jornais precisam refletir mais sobre o novo cenário, ouvindo as diversas vozes, iluminando o que está confuso. Além de treinar seus profissionais e protegê-los nesse tempo em que eles vão buscar informação e viram alvo duplo. A Polícia tem que usar inteligência para saber de onde vem e quem são de fato os que escolheram usar métodos violentos. As autoridades têm que parar de lavar as mãos. Está na hora de terem noção do risco que todos corremos.Nenhuma escalada contra jornalista termina bem. Os jornalistas começaram a ser presos em outubro de 1975. Houve uma sequência de eventos. Até que Vladimir Herzog foi morto no dia 25. Hoje, vivemos em outro momento político, em pleno estado de direito. Mas o que está acontecendo é inquietante, perturbador e perigoso demais para ser tratado como se fossem eventos isolados.Houve um momento em que Tatiana, que havia se escondido debaixo de um carro junto com outros manifestantes, saiu e foi até a Polícia. Apresentou-se, disse que tinha se perdido de sua equipe e pediu proteção. Um policial olhou o ferimento das suas costas e disse que ela precisava ir para um hospital, mas recusou ajuda e a mandou sair dali. Para não ser novamente alvo da tropa de choque, ela se escondeu atrás de um barranco e viveu uma situação constrangedora:— Estava com medo, no meio do mato, agachada, escondida como se fosse bandida fugindo da polícia.É obrigação da boa imprensa olhar criticamente para si mesma e aperfeiçoar seu trabalho. O repórter é apenas o mensageiro e o país precisa muito entender a mensagem desse tempo de ruas tão confusas.
 

sábado, 26 de outubro de 2013

Época de Ouro

ARTIGO - ZUENIR VENTURA - O Globo - 26/10/13

Não é qualquer literatura que permite exaltar numa semana um poeta como Vinicius de Moraes e, na outra, um cronista como Fernando Sabino. Agora, em outubro, o primeiro faria 100 anos e o segundo, 90. Houve uma época — de ouro — em que se podia esbarrar com os dois numa mesma noite num bar da cidade ou na cobertura de Rubem Braga, outro cujo centenário acaba de ser comemorado. Há pouco participei em Belo Horizonte de uma mesa em que a cantora Verônica Sabino contou divertidas histórias do pai, que criou tantas sobre o dia a dia que às vezes o cotidiano parece inspirar-se nele. Há casos que a gente ouve e diz: “Isso é coisa do Fernando Sabino.” Estou me lembrando de uma cena que parece ter saído de uma crônica do criador de “O homem nu”. Aconteceu no seu enterro, o mais demorado de que se tem memória no São João Batista. Esbaforido, o jovem repórter chega atrasado e sem saber muito bem quem é o morto e muito menos quem são os amigos a entrevistar, pergunta:— E onde eu posso encontrar o Hélio Pellegrino?— Aqui mesmo — respondeu o informante, apontando para as sepulturas. O psicanalista estava morto havia 16 anos.Além dos debates, uma exposição organizada pelo filho Bernardo em forma de um labirinto de painéis de fotos e frases possibilitava mergulhar no universo do autor de “Encontro marcado”, o emblemático romance de várias gerações. Ele aparece em várias fases da vida. Aqui, com Jorge Amado ou com Louis Armstrong, ali tocando bateria ou numa praia do Rio (aliás, espera-se que a mostra venha para cá, já que Fernando foi o mais carioca dos cronistas mineiros). Nos textos, uma síntese de suas ideias e opiniões: “O otimista erra tanto quanto o pessimista, mas não sofre por antecipação.” “No fim tudo dá certo, e se não deu certo é porque não chegou ao fim.” “Não confio em produto local; sempre que viajo, levo meu uísque e minha mulher.” “Ser mineiro é não dizer o que faz, nem o que vai fazer; é fingir que não sabe aquilo que sabe; é falar pouco e escutar muito, é passar por bobo e ser inteligente.”Há uma que soa como um projeto de vida: “Antes de mais nada, fica estabelecido que ninguém vai tirar meu bom humor.” Gozador, Fernando gostava de passar trotes e implicar com os amigos. De Vinicius de Moraes, por ter se bandeado para a música popular, ele dizia: “Quem fez o Soneto de Fidelidade não pode ficar escrevendo ‘Vai, vai, vai, vai/ Não vou/ Vai vai, vai, vai,/ não vou’.” Também parodiava o poeta da paixão, fazendo uma substituição. Em vez de “infinito enquanto dure”, ele dizia que o amor só é infinito “enquanto duro”.Esse lado irreverente, brincalhão, meio infantil, essa recusa de se levar a sério talvez seja o melhor retrato daquele que escolheu como epitáfio: “Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino.”

Zuenir Ventura é jornalista