Por Arnaldo Jabor - O Estado de São Paulo
Meu avô chegou em casa chorando. As ruas estavam desertas e o silêncio era
total. Isso, no dia 16 de julho de 1950, quando o Brasil perdeu para o Uruguai.
Lembro de meu avô dizendo que só se ouviam os sapatos. Os chinelos, até pés
descalços desciam as rampas do Maracanã e, vez por outra, alguém soluçava. Eu
era pequeno e não entendia bem aquele desespero que excitava a criançada - ver
adultos chorando! Muitos anos depois o Nelson Rodrigues me disse a mesma coisa:
só os sapatos falavam. Mas por que isso aconteceu?
A guerra tinha acabado, a Fifa nos escolhera para a sede da Copa porque a
Europa estava ainda muito combalida pela guerra. Tivemos de construir o
Maracanã, que o prefeito Mendes de Morais inaugurou como se fosse o símbolo de
um Brasil novo - o maior estádio do mundo. Getúlio Vargas já era candidato a
presidente democraticamente eleito e tínhamos a sensação que deixaríamos de ser
um país de vira-latas para um presente que nos apontava o futuro. O governo
Dutra tinha gasto a maior parte de nossas altas reservas do pós-guerra em
importações americanas. Inteiramente submisso ao desejo dos gringos, nos
enchemos de produtos inúteis: meias de nylon, chicletes de bola, bolinhas de
gude coloridas com que jogávamos, ioiôs, carros importados, o novo clima do
cinema americano, dos musicais da Metro, o sonho de alegria e orgulho que
pedimos emprestado aos Estados Unidos. Com ingênua esperança de modernidade,
achávamos que nossa vez tinha chegado. E fomos ao jogo para ver nossa
independência. Tínhamos certeza absoluta da vitória. Os jornais já fotografavam
os jogadores do "scratch" como campeões invencíveis. Tínhamos ganho tudo. Apenas
um empate com a Suíça, sete a um contra a Suécia, seis a um contra a "fúria"
espanhola. O estádio estava cheio de ex-vira-latas, de ex-perdedores; como diria
Nelson Rodrigues, todos éramos patrióticos granadeiros bigodudos e dragões da
independência, Napoleões antes de Waterloo. Não queríamos apena uma vitória, mas
a salvação. Só a taça aplacaria nossa impotência diante da eterna zona
brasileira. Queríamos berrar ao mundo: "Viram? Nós somos maravilhosos!".
Precisando de somente um empate, a seleção brasileira abriu o marcador com
Friaça aos dois minutos do segundo tempo, mas o Uruguai conseguiu a virada com
gols de Schiaffino e Ghiggia. Claro que foi um terrível lance de azar, mas, para
nós, o mundo acabou. No estádio mudo, sentia-se a respiração custosa de 200 mil
pessoas. Ouvia-se a dor. Foi uma mutação no País.
Não estávamos preparados para perder! Essa era a verdade. E a certeza
onipotente leva à desgraça. Traz a morte súbita, a guilhotina. Sem medo, ninguém
ganha. Só o pavor ancestral cria uma tropa de javalis profissionais para o
triunfo, só o pânico nos faz rezar e vencer, só Deus explica as vitórias
esmagadoras, pois nenhum time vence sem a medalhinha no pescoço e sem
ave-marias. Isso é o óbvio, mas foi ignorado. E quando o óbvio é desprezado,
ficamos expostos ao sobrenatural, ao mistério do destino. Um amigo meu, já
falecido, Paulo Perdigão, escreveu um livro essencial para entender o País
naquela época - A Anatomia de Uma Derrota, em que ele cria uma frase que nos
explicava em 50 e que nos explica até hoje: o Brasil seria outro país se
tivéssemos ganho "aquela" Copa, "naquele" ano. "Talvez não tivesse havido a
morte de Getúlio nem a ditadura militar. Foi uma derrota atribuída ao atraso do
País e que reavivou o tradicional pessimismo da ideologia nacional: éramos
inferiores por um destino ingrato. Tal certeza acarretou nos brasileiros a
angústia de sentir que a nação tinha morrido no gramado do Maracanã..." E aí ele
escreveu a frase rasgada de dor: "Nunca mais seremos campeões do mundo de
1950!".
Esta sentença nos persegue até hoje. Talvez nunca mais tenhamos o peito cheio
de fé como naquele ano remoto.
Lá, sonhávamos com um futuro para o País. Agora, tentávamos limpar nosso
presente. Somos hoje uma nação de humilhados e ofendidos, debaixo da chuva de
mentiras políticas, violência e crimes sem punição. Descobrimos que o País é
dominado por ladrões de galinha, por batedores de carteira e traficantes. E mais
grave: a solidariedade natural, quase 'instintiva', das pessoas está acabando.
Já há uma grande violência do povo contra si mesmo. Garotos decapitam outros
numa prisão, ônibus são queimados por nada, meninas em fogo, presos massacrados,
crianças assassinadas por pais e mães, uma revolta sem rumo, um rancor geral
contra tudo. Repito: estamos vivendo uma mutação histórica.
Há uma africanização de nossa desgraça, com o perigo de ser irreversível. E
não era assim - sempre vivemos o suspense e a esperança de que algo ia mudar
para melhor.
Isso parece ter acabado. É possível que tenhamos caído de um 'terceiro mundo'
para um "quarto mundo". O quarto mundo é a paralisação das possibilidades. Quem
vai resolver o drama brasileiro? As informações criam apenas perplexidade e
medo, mas como agir? Não há uma ideologia que dê conta do recado.
O mais claro sinal de que vivemos uma mutação histórica é esta Copa do Medo.
Há o suspense de saber se haverá um vexame internacional que já nos ameaça. Será
péssimo para tudo, para economia, transações políticas, se ficar visível com
clareza sinistra nossa incompetência endêmica, secular. Nunca pensei em ver
isso. O amor pelo futebol parecia-me indestrutível. O governo pensava assim
também, com o luxo dos gastos para o grande circo. E as placas nas ruas se
sucedem: "Abaixo a Copa!". "Queremos uma vida padrão Fifa!"
Como vão jogar nossos craques? Com que cabeça? Será possível ganharmos com
este baixo astral, com a gritaria de manifestantes invadindo os estádios? Haverá
espírito esportivo que apague essa tristeza?
Antes, nas copas do mundo, éramos a pátria de chuteiras. Hoje, somos
chuteiras sem pátria.