terça-feira, 22 de abril de 2014

Um jornalista preocupado com os rumos da profissão


Gabriel García Márquez nunca abandonou o ofício e via ligações entre a ficção e o jornalismo
 
RIO - “Perguntaram a uma universidade colombiana quais são as provas de habilidades exigidas a quem deseja estudar jornalismo e a resposta foi categórica: ‘jornalistas não são artistas’. Estas reflexões, ao contrário, baseiam-se precisamente na certeza de que o jornalismo escrito é um gênero literário”.

A frase acima abre o discurso “O melhor trabalho do mundo”, proferido por Gabriel García Márquez na abertura da assembleia da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), realizada em Los Angeles em outubro de 1996, e resume a relação de Gabo com a grande paixão que nunca abandonou.
Na oportunidade, ele destacou dois dos pilares fundamentais para o exercício da profissão: a certeza de que a investigação não é uma especialidade do ofício, já que todo o jornalismo deve ser investigativo por definição, e a consciência de que a ética é uma companheira inseparável.
García Márquez pisou pela primeira vez numa redação aos 22 anos, quando ainda era aluno de Direito, em Bogotá. Nunca terminaria o curso apesar do desejo dos pais. No “El espectador”, tornou-se o primeiro crítico de cinema do jornalismo colombiano e se notabilizou por suas crônicas e longas reportagens.
Uma delas, “Relato de um náufrago”, desagradou ao governo do general Rojas Pinillas e Gabo foi enviado como correspondente para a Europa. Na volta, viveu em Caracas, Havana e Nova York, onde assumiu a direção da agência de notícias cubana Prensa Latina. Contudo, após sofrer perseguições do governo americano, mudou-se para a Cidade do México, onde viveu até sua morte.
Em uma entrevista para a revista “The Paris Review”, em 1977, García Márquez foi questionado sobre sua volta ao jornalismo depois de ser consagrado como escritor. Na resposta, ele afirma que sempre esteve convencido de que “minha verdadeira profissão é a de jornalista” a aponta de que forma as duas atividades se influenciaram mutuamente.
“A ficção ajudou meu jornalismo pois trouxe para ele valor literário. Jornalismo ajudou minha ficção porque me manteve numa relação muito próxima com a realidade".
O Gabo jornalista detestava gravadores (“tenho a impressão de que muitos acreditam que o gravador pensa”, disse certa vez) e era um obcecado pela exatidão das informações. Nelson Fredy, jornalista colombiano, relembra que, em 1999, ajudou o amigo a terminar uma de suas crônicas mais famosas, “El enigma de los dos Chávez”, publicada pela “Revista Cambio”. O escritor pediu que descobrisse até a cor do uniforme do paraquedista venezuelano numa cerimônia militar.
Crítico da formação oferecida pelas escolas de jornalismo, cujos “alunos saem desligados da realidade e de seus problemas fundamentais”, García Márquez criou em outubro de 1994 a Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI) em Cartagena, na Colômbia. Sempre preocupado com a qualidade do jornalismo, a FNPI tem como objetivo incentivar vocações, a ética e a boa narrativa.
Presidida pelo próprio Gabo e dirigida por Jaime Abello Banfi desde o início, a organização já promoveu centenas de cursos, palestras e oficinas em toda América Latina com nomes consagrados do jornalismo, como Tomás Eloy Martínez e Jon Lee Anderson.
No fim de 2012, a FNPI publicou o livro “Gabo, periodista”, uma reunião dos seus melhores trabalhos jornalístico. Sobre a obra, o amigo e jornalista argentino Alberto Salcedo Ramos escreveu:
“García Márquez aprendeu muito rápido que as informações básicas não contam toda a verdade: é necessário recriar a atmosfera, explorar a psique dos personagens, buscar o detalhe”. Em suma, ir além do óbvio, onde Gabo sempre foi.
 

Diário de um repórter 2

Por Joaquim Ferreira dos Santos - O Globo - 21/04/14

Conhecido como Pena Branca, por causa do chumaço grisalho em meio à cabeleira negra, Otávio transbordava lama do morro e as filosofias da sua dura existência

No dia em que eu conheci o restaurateur Rogério Fasano, ele chamou à nossa mesa o garçom que acabara de servir um grupo de executivos logo ao lado. O tom que usou na conversa era paternalmente carinhoso, mas administrativo. Rogério ouvira o garçom perguntar a cada um dos homens se eles queriam café, se eles queriam do tipo carioca ou expresso, se preferiam curto, se descafeinado — e se com açúcar ou adoçante. Dono de uma rede de hotéis e restaurantes com todas as estrelas possíveis, Rogério é um empresário com faro fino para o comportamento humano. Vive da soma dos números e dessas idiossincrasias quase etéreas. Explicou ao garçom que aquele questionário era excessivo. Um freguês ia ao restaurante para relaxar com os amigos, não para responder a intermináveis perguntas do garçom. Seja breve, curto e simples, pediu ao rapaz. “Café?” — e pronto. Cada um juntaria suas preferências à resposta, se com leite, se amargo etc. Achei interessante, mas não me servia a lição. Pelo contrário. Aguçava a realidade de que minha profissão estava do outro lado da mesa — e comecei a fazer dezenas de perguntas a Rogério sobre o treinamento de seu pessoal. Ele riu. Disse que como repórter eu seria um péssimo garçom.
No dia em que eu conheci Maitê Proença, estávamos numa roda de íntimos, e a conversa imediatamente descambou para as mais escabrosas histórias da sexualidade humana. A atriz rotulava os encontros carnais de “treps”, acompanhando a expressão com aquele gesto de mão que tornou famosa a apresentação do cantor Jair Rodrigues no pré-rap “Deixa que digam, que pensem, que falem”. Maitê tem humor e, também escritora, persegue assuntos. Juntei a fome com a vontade de comer, expressão que ela achou apropriada, e convidei-a, sem dupla intenção, sequer dupla penetração, expressão com que arranquei novas risadas dela, para irmos ao peep-show logo na outra esquina. As strippers se dedicavam àquele ritual enfadonho de arrebitar o bumbum e autoalisar as partes, até que viram Maitê na plateia. Começaram a dar gritinhos de fãs, mas ficaram mais acanhadas ainda em botar fogo no show. No camarim, curiosa por tudo o que se refere à sexualidade dos humanos e afins, Maitê viu o piercing cravado na genitália de uma das moças. Fez questão de segurar nele. Puxou um pouco. Perguntou se doía. A resposta da moça eu prometi deixar com exclusividade para Maitê. Deve estar no seu próximo livro.
No dia em que eu conheci Otávio Ribeiro, o famoso repórter de polícia, ele chegava do Chapéu Mangueira, e a sua bota, suja de lama, desenhava pegadas no carpete da redação. Conhecido como Pena Branca, por causa do chumaço grisalho em meio à cabeleira negra, Otávio transbordava lama do morro e as filosofias da sua dura existência. Foi garoto pobre, mal aprendera a escrever. Desenvolvera, no entanto, um faro descomunal para a notícia, além de deliciosa capacidade de se fazer querido pelas fontes. O homem era a mais completa poesia da malandragem, capaz de acionar sua metralhadora verbal e disparar frases inteiras em que os ouvidos cultos não reconheciam uma única palavra dicionarizada. Dizem que a polícia dos anos 1960 o obrigou, e a mais uns 10 repórteres, a atirar no corpo de Cara de Cavalo para tornar todos cúmplices na morte do bandido. A vida tinha sido enérgica com Otávio “Pena Branca” Ribeiro. No dia em que eu o conheci na redação, ele estava ciente do fortuito da existência — e, impressionado com os meus óculos de intelectual, cobrava sabedoria racional. “Explicaí, ô ‘piroca’”, era como ele chamava carinhosamente a todos. “Eu fui criado na bandidagem, tinha tudo para estar do outro lado do parlapatório atirando azeitona, azeviche, o escambau, em cima de você. Quem me trouxe aqui pra dentro desse confofo de ar e refrigéri?”. De sacanagem, para falar complicado também, devolvi: “Quem sabe-lo-á, Pena Branca?” — e nos ensimesmamos na ignorância de nossos verbos.
No dia em que eu conheci o compositor Mano Décio da Viola, um dos fundadores das escolas de samba do Rio, eu anotei a glória deste encontro e também o fracasso que a ele se sucedeu. Eu começava a escrever o texto da reportagem quando recebi, na redação da revista onde trabalhava, a nova edição da semanal concorrente, que trazia uma matéria bastante parecida com a que eu ia escrever, sobre o renascimento cultural que havia em Madureira, o bairro de Mano Décio. Imediatamente eu fui ao telefone para tranquilizar, em São Paulo, o editor Elio Gaspari. A concorrente saíra com algo parecido, eu disse, mas nós arrasaríamos, publicaríamos na próxima semana um texto muito melhor, pois Mano Décio havia me contado memórias inéditas da criação das escolas etc. Gaspari, paciente como sempre, deu numa frase curta um curso de jornalismo. “Pode esquecer a matéria, Joaquim. Vai dar a impressão de que somos melhores, mas eles são mais rápidos”. Telefonei para Mano Décio com o pedido de desculpas. O grande sambista deu razão ao Elio.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

"Você é o que sabe sobre o que come", prega 'detetive dos rótulos'

Por Marina Cohen - O Globo/Nutrição - 07/04/2014
 
Jornalista faz sucesso na internet ao desvendar ingredientes de alimentos industrializados e revelar ‘mentiras’ dos fabricantes
 
RIO - Corante caramelo 4, benzoato de sódio, gordura vegetal hidrogenada, propionato de cálcio, sorbato de potássio, ácido fosfórico, emulsificante, espessante... A maior parte das pessoas não sabe o que significam esses nomes esquisitos. Mas eles estão presentes no nosso dia a dia, nas listas de ingredientes de produtos que comemos ou bebemos - pães, biscoitos, refrigerantes, sorvetes etc. Para ajudar o consumidor a entender o que ingere, a jornalista Francine Lima criou o canal “Do campo à mesa”, um sucesso no YouTube. Em vídeos curtos de, em média, cinco minutos, a paulista de 37 anos faz experimentos e testes para desvendar, por exemplo, quantas laranjas existem dentro de uma caixa de suco industrializado ou quantas colheres de açúcar uma barra de cereal contém. Um verdadeiro trabalho de investigação.- Escolho uma categoria de produto, como suco de frutas ou achocolatado, e vou ao supermercado analisar o que trazem as embalagens de diversas marcas. Depois, começo a identificar os ingredientes que podem ser um problema, como aditivos, conservantes e corantes. Então corro atrás de documentos da indústria de alimentos para desvendar para que serve e como é feito cada ingrediente - explica Francine, que faz tudo sozinha, da pesquisa à gravação das “aulas” eletrônicas. - Meu esporte favorito é revelar as mentiras que os rótulos dos alimentos contam.Há seis meses, por exemplo, ela demonstrou as baixas quantidades de farinha integral em pães assim denominados. O problema é tão generalizado que a Justiça do Rio determinou, em fevereiro passado, que duas das principais marcas do mercado deixem claro nas embalagens o quão integrais são realmente seus produtos.Parafraseando o mais famoso slogan cunhado pela nutricionista escocesa Gillian McKeith, Francine criou seu próprio bordão: “Você é o que sabe sobre o que come”. A lógica é simples: ignorar o que se ingere é como tomar veneno. Em alguns casos, literalmente. Ela lembra, por exemplo, que o benzoato de sódio, um conservante bactericida e fungicida amplamente usado na indústria, ao ser misturado à vitamina C pode resultar em benzeno, um solvente que, mesmo consumido em doses mínimas, é perigosíssimo e cancerígeno.- A informação mais importante na embalagem de um produto não é a tabela nutricional, mas a lista de ingredientes. E ela vem sempre em ordem decrescente de quantidade. Ou seja: se os primeiro itens da lista não forem bons para você, não compre - ensina a detetive dos rótulos.Foi a comida da mãe que inspirou o interesse de Francine pela nutrição. Criada em São José dos Campos, no Vale do Paraíba paulista, ela se mudou para a capital do estado no fim da adolescência para cursar jornalismo na Universidade de São Paulo. Morando sozinha e sem grana, só comia macarrão instantâneo, salsicha e ovo frito. Não foi difícil observar que seus colegas de faculdade se alimentavam tão mal quanto ela. O cenário avassalador virou tema do trabalho de conclusão da sua graduação, “Comendo de mentirinha”.- Muita gente me dizia que almoçava “uma coisinha para tirar a fome”, mas, para mim, fazer uma refeição era comer o que minha mãe tinha ensinado - lembra Francine, que, depois disso, aprendeu a cozinhar e, hoje, faz mestrado em Nutrição em Saúde Pública na USP, com uma análise do discurso da rotulagem de alimentos.Já com uma carreira sólida no jornalismo de saúde, Francine teve a ideia de criar o canal de vídeos, em julho passado. O vídeo inaugural, que questiona quantos morangos existem dentro de um iogurte com sabor da fruta, acumulou mais de 90 mil visualizações. Mas o episódio com maior audiência até hoje, quase 100 mil acessos, comprova algo de que muita gente já desconfia: que os refrigerantes são constituídos quase tão-só por água com gás, (muito) açúcar e flavorizantes potencialmente perigosos.- Achava que o meu assunto só atraía um grupo pequeno de consumidores que compram produtos orgânicos. Mas fiquei feliz por ver que tem muita gente interessada em saber o que está comendo - afirma, animada.
 
Fonte: Jornal O Globo, 7/4/2014, pág. 23